Carlos Augusto Maranhão
Membro da Diretoria da Sociedade Antroposófica no
Brasil
Desde tempos imemoriais, o ser humano tenta elucidar a questão do mal de diversas formas, seja através de mitos, de considerações filosóficas ou teológicas; no entanto, ela permanece um grande enigma. Antes do advento do pensamento filosófico na Grécia Antiga (século VI a.C.), o mal era retratado em imagens mitológicas provindas de uma antiga consciência clarividente. Essas imagens satisfaziam a alma dos homens de então, mas hoje o tipo de conhecimento intelectualista prevalecente não dá conta de atingir as profundezas dos seus significados. As explicações de grandes filósofos como Platão (428?-348? a.C) e Plotino (205-270) ou filósofos teólogos como Sto. Agostinho (354-430), por mais profundas que sejam, permanecem insatisfatórias para apaziguar a alma humana em sua busca de sentido.
O tema do mal foi tratado por Rudolf Steiner (1861-1925) de várias maneiras e em várias ocasiões. Gostaria de escolher, entre suas considerações, aquelas que nos remetem aos princípios de entendimento desse enigma e que lançam luz sobre o sentido de sua existência.
Em palestra de 15/11/1914, com o título "Das Böse im Lichte der Erkenntnis vom Geiste" ("O mal à luz do conhecimento do espírito", GA obra completa 63), Steiner procura mostrar as várias tentativas de explicação do enigma desde os estóicos até importantes filósofos do século XIX. Os estóicos tinham como modelo do homem sábio, aquele que consegue subjugar as paixões e impotências da alma por meio de uma ascese. O ser humano não pode deixar que o mal, ativo nas vastidões cósmicas e também na alma humana, possa superar sua busca pela sabedoria divina. Porém, segundo Steiner, a visão dos estóicos permaneceu superficial na medida em que se deteve em mera justificação para seu lema de atuação.
Já Sto. Agostinho chegou à estranha conclusão de que o mal e o erro não existiam de fato, mas eram apenas negação ou ausência do bem, de modo análogo à escuridão, que não teria realidade em si, mas seria entendida como ausência de luz: "Um ser finito possui fraquezas e não pode contínua e eternamente efetuar bons atos." Essa explicação é para Steiner insatisfatória, pois é como se quiséssemos esclarecer o frio como negação do calor e isso não nos exime da necessidade de usarmos roupas quentes no inverno.
Steiner faz alusão a um outro grupo de pensadores que se aproximam daquilo que seria a explicação da Antroposofia. Um deles é Plotino, que explica o mal em termos da combinação de matéria e espírito: "Ao submergir-se no corpo físico, o ser humano envolve-se com a matéria que, por sua natureza, obstrui o fazer do espírito". Essa imersão seria a fonte do mal tanto na vida humana quanto no mundo externo. Essa concepção é tão abrangente que coincide com a do pensador japonês Nakae Toju (1608-1648), seguidor do pensador chinês Wang Yang-ming (1472-1529). Ele vê em tudo uma dualidade: RI, reino do espírito e KI, reino da natureza física. Todos os seres nascem da combinação desses dois princípios. A vontade humana surge dessa mistura e se desenvolve em desejo e toda a potencialidade para o mal.
O pensador alemão Hermann Lotze (1817-1881), autor de Mikrokosmos, assume que Deus precisava do mal para nos capacitar a ganhar a liberdade da alma e isso só poderia acontecer por meio do nosso próprio esforço para nos tornarmos auto-conscientes. No entanto, como explicar o mal no reino animal, se nele vemos atrocidades e não há a possibilidade de auto-educação? Lotze conclui que a inclinação para o mal é resultado da vontade de Deus como algo dado conectado com o mundo da mesma forma como os ângulos de um triângulo somam 180 graus. Porém, isso é visto como uma drástica limitação da onipotência divina. Lotze não aceitava o entendimento de Leibniz (1646-1716), na sua obra Théodicée, publicada em 1710, segundo a qual nós vivemos no "melhor dos mundos possíveis": dada a onisciência de Deus ele não poderia deixar de conhecer todas as possibilidades. Para Lotze, Leibniz não resolve o enigma e ele conclui que a existência do mal deve-se a uma sabedoria divina que não podemos compreender. Apesar do aparente pedantismo dessas considerações, Steiner quer nos demonstrar quão inadequados são os instrumentos dos filósofos para tratar dessa questão.
Steiner cita também uma outra ordem de pensadores: os místicos. Dentre eles, Jakob Böhme (1575-1624) procurou rastrear o mal em sua fonte o mundo espiritual. O mal está enraizado no tecido do mundo e da humanidade. Ele vê surgir no divino a necessidade de "diferenciação". Um ser que permanece no fluir cósmico não poderia jamais se tornar consciente de si. Para que a auto-consciência ocorra é necessária uma oposição. Como o ser divino não encontra oposição em outros seres, ele tem de ser o seu próprio adversário e colocar o seu próprio "sim" contra o seu próprio "não". O mal, portanto, não surge do ser divino, mas dos seres que este precisa criar como adversários para que possa perceber a si mesmo.
Embora essa explicação se aproxime do que se obtém da Antroposofia de Steiner, ela ainda não consegue penetrar nos segredos da existência como se gostaria. Por isso, Steiner recorre à alusão ao caminho iniciático em busca dos mundos superiores. Quando o iniciado se eleva a esses mundos, tudo o que ele reconhece como mal ou mesmo falho e incompleto fornece o maior obstáculo ao seu desenvolvimento. Ao olharmos para nossas vidas com todas as suas imperfeições, erros, paixões e fraquezas, surge a necessidade de transmutá-los em bem. A vontade que eventualmente desenvolvemos nesse sentido nunca é tão poderosa quanto aquela que adquirimos quando transpomos o limiar para o mundo espiritual.
O traço comum de todo o mal é o "egoísmo". Toda a luta que se quer empreender contra o mal dá-se por meio da luta contra a tendência de se auto-centrar e focar somente os próprios interesses, em detrimento dos demais. Porém, nessa mesma luta há uma tendência que é pré-condição para o empreendimento da busca dos mundos superiores de uma forma moderna: com auto-consciência. Essa condição é o fortalecimento do Eu. Precisamos fortalecer algumas qualidades da alma que se parecem com aquelas inerentes ao egoísmo. A alma só pode elevar-se quando desenvolve essa força do Eu auto-enraizado. Assim Steiner nos apresenta um aparente paradoxo: "as qualidades que infringem os princípios morais, são precisamente as que precisamos reforçar no caminho da percepção dos mundos do espírito". No entanto, só no mundo físico podemos encontrar condições que nos permitem superar o egoísmo. É altruísmo que precisamos desenvolver para quebrar o "hábito" do egoísmo tão profundamente arraigado, mas que foi necessário para desenvolvermos nossa auto-consciência. Paradoxalmente, é o fortalecimento de nosso Eu no mundo espiritual entre a morte e um novo nascimento que nos capacita a preparar uma encarnação no mundo físico onde podemos nos tornar tão altruístas quanto possível. Isso nos mostra que precisamos manter-nos conectados com o mundo físico, com o nosso carma o nosso destino, pois só nele podemos nos aperfeiçoar. A fonte do mal dá-se quando deslocamos aquilo que é necessário para o mundo espiritual para as coisas da vida física.
Numa outra palestra, "A origem do mal", de 22/11/1906 em Berlin (GA 55), Steiner nos dá a mesma conexão com a idéia de altruísmo, desta vez aludindo ao amor. Nela, Steiner remete-nos à lei inexorável da evolução, segundo a qual carregamos uma dupla natureza: "a que reinará num futuro longínquo e a que será nele um reino inferior". O ser humano passou por uma fase remotíssima onde incorporou a qualidade da sabedoria. Hoje a sabedoria está presente, por exemplo, na perfeição do corpo físico. Ela desenvolveu-se a partir do imperfeito do não sábio, isto é, do erro. A existência terrestre hoje significa o cosmo do amor. Nosso membro supra-sensível responsável por nossas sensações e sentimentos ainda não se desenvolveu tanto quanto o corpo físico, resultado da sabedoria. Ele precisa desenvolver o amor a partir do conflito, assim como a sabedoria desenvolveu-se a partir do erro. Seres espirituais implantaram a sabedoria humana no amor; sem sua influência o ser humano teria se tornado apenas bom. Mas foi necessário adicionar ao Eu o amor-próprio, o egoísmo. "O bem poderia ter-se realizado sem aqueles seres espirituais, mas a liberdade não".
"O mal é o bem fora de lugar". Não se deve dizer que o mundo é imperfeito porque contém o mal ele tende à perfeição justamente devido ao mal. Como Goethe diz no seu Fausto, pela boca de Mefistófeles: "Eu sou parte daquela força, que sempre quer o mal, mas sempre acaba criando o bem." (Primeira Parte, cena do escritório.)
Assim vemos que não se consegue um entendimento do enigma do mal por investigações que permanecem no âmbito do intelecto. Todos aqueles que o tentaram não apresentaram soluções satisfatórias. Para um encaminhamento adequado desse enigma, sem necessariamente termos a ilusão de elucidá-lo plenamente, mas com a esperança de conseguirmos um entendimento mais profícuo, precisamos considerar que o ser humano não limita sua existência ao reino físico, mas pertence em essência ao reino espiritual. A ciência que assim considera pode dar-nos a luz que necessitamos em nosso anseio de compreensão.
Publicado originalmente no Boletim da Sociedade Antroposófica no Brasil, No. 49, março de 2008, pp. 6-9
Revisão desta versão (22/6/08): V.W. Setzer
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