Tradução: Sonia Setzer
INTRODUÇÃO(2)
A tarefa da Ciência Espiritual(3)
Anotações de uma conferência proferida em Berlim em 1903 ou 1904
Existe um belo dito de Hegel(4): O mais profundo pensamento vincula-se com a figura histórica e exterior do Cristo. O grandioso da religião cristã é que ela existe para qualquer nível de instrução. A consciência mais ingênua consegue captá-la e ao mesmo tempo ela serve de convite para a mais profunda sabedoria.
O fato de a religião ser compreensível para qualquer grau de consciência já foi comprovado por sua história evolutiva. Entretanto, deve ser tarefa da corrente espiritual antroposófica(5), ou da Ciência Espiritual de um modo geral, mostrar que ela convida a penetrar nas mais profundas doutrinas de sabedoria de toda a humanidade, desde que aquela entenda sua tarefa. Antroposofia não é religião, mas um instrumento para a compreensão das religiões. Sua relação com os documentos religiosos é semelhante à da ciência matemática com os documentos que surgiram como compêndios de Matemática. Consegue-se entender matemática a partir das próprias forças mentais, reconhecer as leis do espaço sem levar em consideração aquele livro antigo(6). Tendo, porém, reconhecido as leis da geometria, assimilado as mesmas dentro de si, será possível dar mais valor ainda ao antigo livro, que pela primeira vez colocou essas leis diante da mente humana. Assim acontece com a Antroposofia. Suas fontes não se encontram em documentos, não se baseiam em tradições. Suas fontes estão nos mundos espirituais reais; é lá que se deve encontrá-las e entendê-las, pelo desenvolvimento de suas próprias forças espirituais, do mesmo modo que se capta a matemática quando se procura desenvolver as próprias forças intelectuais. Nosso intelecto, que nos serve para entender as leis no mundo sensorial, tem como suporte um órgão, o cérebro. Para entender as leis dos mundos espirituais também necessitamos órgãos correspondentes. Como se desenvolveram nossos órgãos físicos?
Pelo fato de forças externas – as forças do sol, as forças do som – terem neles trabalhado, surgiram o olho e o ouvido. Isso se deu a partir de órgãos embotados, que inicialmente não permitiam a entrada do mundo sensório e apenas pouco a pouco se abriram. Assim abrir-se-ão também nossos órgãos espirituais, desde que forças corretas trabalhem neles.
Quais são, então, as forças que se precipitam sobre nossos órgãos espirituais ainda embotados? Durante o dia há forças que penetram no corpo astral do ser humano atual, trabalhando contra sua evolução, até amortecendo os órgãos que ele possuía antigamente, quando a clara consciência diurna ainda não se lhe tinha tornado acessível. Antigamente o ser humano tinha a percepção direta de impressões astrais. O mundo circundante falava-lhe por meio de imagens, pela forma de expressão própria do mundo astral. Cores, imagens vivas, estruturadas em si mesmas, flutuavam livremente no espaço como expressão de prazer e desprazer, simpatia e antipatia. Mais tarde essas cores como que se depuseram na superfície das coisas, os objetos passaram a ter contornos rígidos. Isto ocorreu quando o corpo físico do ser humano tornou-se cada vez mais duro e estruturado. Quando seus olhos abriram-se plenamente à luz física, quando o véu da maia(7) colocou-se diante do mundo espiritual, o corpo astral do ser humano passou a receber as impressões do mundo circundante pela via do corpo físico e do corpo etérico; depois, ele mesmo as transmitia ao Eu, e de lá elas passavam para a consciência da pessoa. Desse modo ele estava sendo sempre solicitado, estava em atividade contínua. Mas o que trabalhava nele não eram forças plásticas, maleáveis, que correspondem à sua própria natureza. Eram forças que o consumiam, amorteciam, para despertar a consciência do Eu. Somente à noite, quando ele submergia no mundo rítmico-espiritual, para ele homogêneo, ele se fortalecia novamente, podendo também levar forças aos corpos físico e etérico. A vida do Eu individual, da consciência do Eu, originou-se do conflito das impressões, da extinção dos órgãos astrais que antigamente atuavam inconscientemente no ser humano. Morte a partir da vida, vida a partir da morte. O círculo da serpente estava fechado. Foi então preciso que, a partir dessa consciência do Eu desperta, surgissem forças para novamente estimular a vida nos restos extintos dos antigos órgãos astrais, conferindo-lhes uma estrutura plástica.
A humanidade movimenta-se em direção a essa meta, para onde é conduzida por seus mestres, seus guias, os grandes iniciados, cujo símbolo também é a serpente. Trata-se de uma educação em direção à liberdade, por isso ela é lenta, difícil. Os grandes iniciados podiam, por assim dizer, facilitar sua tarefa e a dos seres humanos, se durante a noite, quando o corpo astral está livre, eles o trabalhassem de tal modo a nele imprimir os órgãos astrais, atuando sobre ele a partir do exterior. Isso, contudo, seria uma atuação no âmbito da consciência onírica do ser humano, uma interferência em sua esfera de liberdade. O princípio mais elevado do ser humano, a vontade, jamais se desenvolveria. O ser humano é conduzido passo a passo. Houve uma iniciação na sabedoria, uma na índole(8) e uma na vontade. O cristianismo verdadeiro é o resumo de todos os níveis de iniciação. A iniciação da Antigüidade era o prenúncio, o preparo. Lenta e gradualmente o ser humano mais recente emancipou-se de seu iniciador, de seu guru. No princípio, a iniciação ocorria em plena consciência de transe, mas munida com os meios de imprimir no corpo físico a lembrança do que ocorrera fora do corpo físico. Isso explica a necessidade de soltar junto com o corpo astral também o corpo etérico, o portador da memória. Os dois submergiam no Mar da Sabedoria, no Mahadeva, na Luz de Osíris. Essa iniciação transcorria no maior segredo, em total reclusão. Nenhum sopro do mundo exterior podia imiscuir-se nesse processo. A pessoa estava como que excluída do mundo exterior; os delicados brotos eram cuidados à parte da luz ofuscante do dia.
Depois a iniciação saiu da escuridão dos Mistérios para a mais clara luz do dia. A iniciação de toda a humanidade no nível do sentimento, da índole, ocorreu historicamente – e ao mesmo tempo simbolicamente – numa personalidade grandiosa, poderosa, portadora do mais elevado princípio unificador, do Verbo, que expressa o Pai oculto, sendo sua manifestação. Por ter assumido a forma humana, essa personalidade tornou-se assim o Filho do Homem, podendo ser o representante de toda a humanidade, o elo unificador de todos os Eus: o Cristo, o espírito vital, o unificador eterno. Esse acontecimento foi de tal magnitude que podia ter seu eco em todo indivíduo que tentasse repetir essa vivência, atingindo até o âmbito físico, até o aparecimento das chagas, até as dores mais lancinantes. Foram sacudidas todas as profundezas dos sentimentos. Surgiu uma intensidade na sensação que jamais tinha permeado o mundo em ondas tão poderosas. Na iniciação na cruz do amor divino ocorreu o sacrifício do Eu para todos. A expressão física do Eu, o sangue, fluiu em amor para a humanidade e atuou de tal modo que milhares de pessoas afluíram a essa iniciação, a essa morte, deixando seu sangue fluir em amor, em entusiasmo pela humanidade. O quanto de sangue fluiu dessa maneira nunca foi salientado suficientemente, não chega à consciência das pessoas, nem mesmo nos círculos antroposóficos. No entanto, as ondas de entusiasmo que desciam e subiam nesse fluxo de sangue cumpriram sua tarefa. Tornaram-se poderosos impulsionadores. Tornaram o ser humano maduro para a iniciação da vontade.
Este é o legado do Cristo.
EXERCÍCIOS COLATERAIS
Exigências gerais que deve colocar a si próprio aquele que pretende
fazer um desenvolvimento oculto (1906)(9, 10)
A seguir serão apresentadas as condições que devem servir de base para um desenvolvimento oculto. Ninguém deveria imaginar ser possível progredir por meio de quaisquer medidas da vida exterior ou interior, sem preencher essas condições. Todos os exercícios de meditação, concentração e outros tantos não terão valor e, em certo sentido, até podem ser prejudiciais, se a vida não for ordenada no sentido dessas condições. Não é possível dar forças ao ser humano; somente consegue-se fazer com que se desenvolvam as que já existem dentro dele. Elas não se desenvolvem por si mesmas, porque existem obstáculos exteriores e interiores. Os obstáculos exteriores são removidos pelas regras de vida expostas a seguir, e os interiores pelas instruções específicas sobre meditação, concentração, e assim por diante.
A primeira condição é a aquisição de um pensar perfeitamente claro. Para esse fim é preciso libertar-se das divagações dos pensamentos, mesmo que seja por um curto período do dia, cerca de cinco minutos (quanto mais, melhor). É preciso tornar-se senhor de seus pensamentos. Não se é senhor quando circunstâncias externas, profissão, qualquer tipo de tradição, relações sociais, até mesmo o pertencer a um determinado povo, a hora do dia, certos afazeres, etc., etc., determinam um pensamento e a elaboração subseqüente do mesmo. Portanto, no espaço de tempo mencionado acima se deve, por um ato de livre vontade, esvaziar a alma do curso habitual, cotidiano, do pensamento e, por iniciativa própria, colocar um pensamento no centro da alma. Não se deve imaginar que esse pensamento deva ser algo especial ou interessante; alcança-se até melhor o que se pretende atingir em sentido oculto quando, de início, houver o esforço de escolher um pensamento o mais desinteressante e insignificante possível. Assim estimula-se melhor a força autônoma do pensar, que é o que importa, enquanto um pensamento interessante por si só já arrasta o pensar consigo. É melhor essa condição de controlar o pensamento ser realizada com um alfinete do que com Napoleão Bonaparte. Diz-se o seguinte a si mesmo: "Agora vou partir desse pensamento e acrescentar-lhe, por iniciativa interior própria, tudo que possa ser vinculado objetivamente a ele." No final do período proposto o pensamento deve estar tão colorido e vivo diante da alma como no começo. Faz-se esse exercício todos os dias, durante pelo menos um mês. Pode-se escolher a cada dia um novo pensamento, mas também é possível conservar um pensamento por vários dias. Ao terminar esse exercício procure-se trazer totalmente à consciência o sentimento de firmeza e segurança, que logo se poderá notar quando se prestar atenção sutil à própria alma; finaliza-se o exercício pensando na própria cabeça e no meio das costas (cérebro e medula espinal), como querendo verter aquele sentimento nessa parte do corpo.
Depois de ter feito esse exercício durante um mês acrescenta-se uma segunda exigência. Tenta-se imaginar alguma ação que certamente não se teria executado no decurso habitual da vida. Propõe-se então tornar esse ato uma obrigação diária. Será bom escolher uma ação que possa ser realizada todos os dias por um período o mais longo possível. Mais uma vez é melhor iniciar com um ato insignificante, para o qual, por assim dizer, é preciso forçar-se. Por exemplo, tome-se a resolução de regar, numa determinada hora do dia, uma flor que se tenha comprado. Depois de algum tempo deve-se acrescentar uma segunda ação desse tipo, posteriormente uma terceira e assim por diante, tantas quantas se consegue executar sem prejuízo dos demais afazeres. Esse exercício também deve ser feito durante um mês. Na medida do possível deve-se também nesse segundo mês dedicar-se ao primeiro exercício, mesmo que este não constitua mais uma obrigação restrita, como no primeiro mês. No entanto, não se deve descuidar dele, pois senão logo se notaria como os frutos adquiridos do primeiro mês perder-se-iam, recomeçando a costumeira falta de controle dos pensamentos. Aliás, é preciso cuidar para que esses frutos, uma vez adquiridos, jamais se percam. Tendo realizado uma ação de iniciativa [própria] por meio do segundo exercício, é preciso tomar consciência, mediante uma atenção sutil, do sentimento de um impulso de atividade interior dentro da alma; verta-se, por assim dizer, esse sentimento de tal modo no corpo, que ele possa fluir da cabeça até por sobre o coração.
No terceiro mês um novo exercício deve ser colocado no centro da vida: o cultivo de uma certa equanimidade diante das oscilações de prazer e sofrimento, alegria e dor. A euforia arrebatadora e a tristeza mortal devem ser substituídas conscientemente por um estado de alma equilibrado. É preciso ter cautela para não sermos arrebatados por uma alegria, arrasados por uma dor, que nenhuma experiência nos leve à fúria ou aborrecimento desmedidos, nenhuma expectativa nos preencha de ansiedade ou medo, nenhuma situação nos deixe desconcertados, etc., etc. Não se deve recear que tal exercício deixe a pessoa austera e desgostosa da vida; pelo contrário, logo se notará que, no lugar daquilo que se passa em decorrência desse exercício, surgem qualidades anímicas purificadas. Principalmente, um dia poder-se-á perceber, prestando uma atenção sutil, uma calma interior no corpo; deve-se vertê-la no corpo, de maneira semelhante à citada nos dois casos anteriores, permitido que irradie do coração para as mãos, os pés e finalmente para a cabeça. Naturalmente nesse caso isto não pode ser realizado depois de cada exercício, uma vez que não se trata de um exercício singular, mas de uma atenção contínua dirigida à vida anímica interior. No entanto, é preciso trazer essa calma interior perante a alma ao menos uma vez por dia, e então realizar o exercício do fluir a partir do coração. Quanto aos exercícios do primeiro e segundo mês proceda-se como se procedeu com o primeiro no segundo mês.
No quarto mês deve-se acrescentar, como exercício novo, a assim chamada positividade. Ele consiste em que se procure, em todas as experiências, entidades e coisas, sempre o que elas apresentam de bom, primoroso, belo, etc. Essa qualidade da alma é bem caracterizada por uma lenda persa sobre o Cristo Jesus(11). Quando, certa vez, ele estava a caminho com seus discípulos, eles encontraram à beira da estrada um cachorro em avançado estado de putrefação. Todos os discípulos se desviaram dessa visão feia, somente o Cristo Jesus parou, observou demoradamente o animal e disse: "Que lindos dentes tem esse animal!" Onde os outros apenas tinham visto o lado feio, antipático, ele procurou o belo. O discípulo esotérico deve esforçar-se por procurar o positivo em qualquer manifestação e em todo ser. Logo ele notará que abaixo do envoltório de algo feio está escondido algo bonito, que mesmo sob o envoltório de um criminoso há algo de bom, que sob o envoltório de um louco de alguma forma está escondida a alma divina. Esse exercício relaciona-se um pouco com o que se pode chamar abstenção de crítica. Não se deve compreender isto como se fosse necessário chamar o preto de branco e o branco de preto. Existe, porém, uma diferença entre um julgamento que é apenas emitido pela própria personalidade em função da simpatia e antipatia dessa personalidade e um ponto de vista que procura transportar-se amorosamente ao fenômeno estranho ou ao ser estranho, sempre se perguntado: O que faz esse outro ser assim ou agir assim? Tal ponto de vista conduz, por si mesmo, a esforçar-se por ajudar o que é imperfeito, ao invés de meramente censurar e criticar. A objeção de que há muitas pessoas cujas condições de vida exigem que censurem ou critiquem não é valida nesse contexto. Pois então essas condições de vida são tais que a pessoa em questão não pode fazer um desenvolvimento oculto correto. Existem muitas situações de vida que impossibilitam o desenvolvimento oculto de modo eficiente. Então a pessoa não deveria exigir impacientemente de assim mesmo fazer progressos, que só podem ser feitos sob determinadas condições. Quem, durante um mês, dirigir conscientemente sua atenção para o aspecto positivo em todas as suas experiências, notará pouco a pouco que um sentimento se insinua em seu íntimo, como se sua pele se tornasse permeável de todos os lados e sua alma se abrisse amplamente diante de uma série de processos ocultos e sutis de seu entorno, que antes disso lhe passavam totalmente desapercebidos. Trata-se justamente disso: combater a falta de atenção diante de coisas sutis, presente em todas as pessoas. Tendo-se notado que o sentimento descrito se faz presente na alma como uma espécie de bem-aventurança, deve-se tentar dirigi-lo em pensamento para o coração, e de lá deixá-lo fluir para os olhos, e destes para o espaço à frente e ao redor. Nota-se então, que dessa forma se obtém uma relação mais íntima com o espaço circundante. Cresce-se, por assim dizer, acima de si mesmo. Aprende-se a considerar parte de seu entorno como algo pertencente a si mesmo. Para esse exercício é necessária muita concentração e, principalmente, o reconhecimento do fato de que todos os sentimentos turbulentos, paixões, emoções, têm um efeito totalmente destrutivo sobre o estado de alma mencionado. Quanto à repetição dos exercícios dos primeiros meses procede-se como já foi indicado para os meses anteriores.
No quinto mês deve-se tentar desenvolver em si o sentimento de enfrentar qualquer experiência nova com total imparcialidade. O discípulo esotérico deve romper completamente com a maneira de pensar com a qual nos defrontamos quando as pessoas dizem o seguinte diante de algo que acabam de ouvir ou ver: "Nunca ouvi semelhante coisa, jamais vi isto, não acredito, isto é uma ilusão". Ele deve estar disposto a aceitar em qualquer momento uma experiência totalmente nova. Tudo o que até então ele reconheceu como lei , o que lhe pareceu possível, não pode servir de entrave para a aceitação de uma verdade nova. A formulação pode ser bastante radical, mas correta, para a situação de alguém chegar ao discípulo esotérico e lhe dizer: "Desde a noite passada a torre da igreja X está totalmente inclinada"; o discípulo do esoterismo deve estar sempre aberto para a possibilidade de que seus conhecimentos da natureza obtidos até então ainda possam ser ampliados por um fato como este, aparentemente tão inaudito. Quem, no quinto mês, esforçar-se no sentido de ter essa mentalidade, notará que um sentimento se insinua em sua alma, como se naquele espaço mencionado no quarto exercício algo passasse a ter vida, como se ali algo se movimentasse. Esse sentimento é extremamente delicado e sutil. Deve-se tentar captar atentamente essa vibração sutil do meio circundante, e permitir, por assim dizer, que ela flua para dentro através de todos os cinco sentidos, especialmente pelos olhos, ouvidos e pela pele, enquanto esta contém o sentido calórico. Nesse grau do desenvolvimento esotérico não se deve dar tanta importância às impressões dessas vibrações sobre os sentidos inferiores, do paladar, do olfato e do tato. Nesse grau ainda não é possível distinguir corretamente as inúmeras influências ruins que nesse âmbito se imiscuem às boas; por essa razão o discípulo deixa isto para uma etapa posterior.
No sexto mês deve-se tentar repetir todos os cinco exercícios de maneira sistemática e alternando-os ordenadamente. Desse modo, pouco a pouco se estabelece na alma um belo equilíbrio. Notar-se-á, principalmente, que insatisfações existentes em relação a certas manifestações e seres do mundo desaparecem totalmente. Apodera-se da alma um estado de espírito conciliador perante todas as vivências, que de forma alguma pode ser considerado indiferença, mas do contrário, é ele que de fato traz a possibilidade de se trabalhar no mundo de maneira progressiva e no sentido de melhorá-lo. Surge uma compreensão serena de coisas para as quais a alma antes estava totalmente fechada. Até mesmo o andar e os gestos da pessoa transformam-se sob a influência de tais exercícios; e se um dia a pessoa notar que sua caligrafia adquiriu um outro caráter, ela pode admitir que está preste a alcançar um primeiro degrau no caminho ascendente. É preciso insistir mais uma vez em dois aspectos:
Em primeiro lugar, os seis exercícios ora mencionados paralisam a influência perniciosa que outros exercícios ocultos possam ter, de modo que permanece apenas o que é favorável. Em segundo lugar, eles asseguram em realidade por si mesmos o êxito positivo do trabalho de meditação e concentração. O mero cumprimento, por mais consciencioso que seja, dos preceitos morais em uso não são suficientes para o discípulo esotérico, pois essa moralidade pode ser egoísta quando a pessoa afirma que quer ser boa para ser considerada boa. O discípulo do esoterismo não pratica o bem porque quer ser considerado bom, mas porque reconhece, pouco a pouco, que somente o bem consegue levar a evolução adiante, enquanto o que é mal, insensato e feio constitui um obstáculo a essa evolução.
FUNDAMENTOS DE UMA EDUCAÇÃO ESOTÉRICA(12)
Anotações da aula esotérica de 6 de Junho de 1907, realizada em Munique(13)
Temos de obter clareza quais são, em realidade, os fundamentos de uma educação esotérica, qual é sua essência. A escola à qual pertencemos é organizada de tal forma que abarca vários círculos. Todas as pessoas novas que chegam, são as que estão "à procura". Quem avança, faz parte dos que "se exercitam". Somente então se segue a verdadeira "educação". Nossa escola divide-se nesses três círculos. Todos nós ingressamos na Escola Esotérica para desenvolver certos órgãos no interior, que nos capacitam a vivenciar por nós próprios os mundos superiores. Aliás, como se consegue desenvolver órgãos em seu interior? Todos nossos órgãos surgiram por uma atividade anteriormente executada por nós mesmos. Ilustremos isso por meio de um exemplo: Houve uma época em que todos nós ainda não possuíamos olhos. Naquela época o ser humano ainda se movia nadando, flutuando num mar primordial líquido. Para orientar-se, ele dispunha de um órgão que hoje existe apenas de forma rudimentar. Trata-se da assim denominada epífise, ou glândula pineal. Ela situa-se no alto, no meio da cabeça, um pouco voltada para dentro. É possível vê-la em alguns animais, quando se remove a calota craniana. Por meio desse órgão o ser humano pré-histórico conseguia perceber se ele se aproximava de algo útil ou inútil. Mas esse órgão servia principalmente à percepção de calor ou frio. Quando, naquela época, o Sol emanava sua luz para a Terra, o ser humano não conseguia vê-lo, mas a pineal o levava para os pontos do mar líquido onde o Sol aquecia a água. Esse calor lhe dava um sentimento de grande felicidade. O ser humano permanecia longo tempo nesses locais e aproximava-se bastante da superfície, para que os raios solares pudessem atingi-lo. Pelo fato de os raios solares incidirem diretamente sobre seu corpo, formaram-se nossos olhos atuais. Portanto, foram necessárias duas coisas para que os olhos pudessem surgir: em primeiro lugar o Sol tinha de brilhar, por outro lado os seres humanos tinham de vir nadando para os locais aquecidos pelo Sol e expor-se ao mesmo. Se as pessoas de então não o tivessem feito, mas dito: quero desenvolver apenas o que já existe em mim –, elas teriam desenvolvido glândulas pineais cada vez maiores, um órgão horroroso, mas jamais teriam obtido olhos.
Devemos imaginar algo análogo em relação ao desenvolvimento de olhos espirituais. Não devemos dizer: ora, os mundos espirituais já existem dentro de mim, preciso apenas permitir que se desenvolvam. As pessoas de então também não conseguiam fazer o Sol desenvolver-se a partir do seu interior, mas certamente os órgãos para enxergá-lo. Assim também nós somente conseguimos desenvolver os órgãos para enxergar o Sol espiritual, os mundos superiores, mas não conseguimos desenvolvê-lo [o Sol espiritual] a partir de nós mesmos. Porém, jamais conseguiremos desenvolver os órgãos se, por um lado, o Sol espiritual não nos enviar sua luz, e por outro lado, se não nos apressarmos em nos expor a ele, para que possa incidir sobre nós. Os locais onde o Sol espiritual brilha para nós são as Escolas Esotéricas, e todos que se sentem atraídos pelas Escolas Esotéricas serão atingidos pelos raios, desde que se comportem de acordo com as indicações da Escola.
Qualquer órgão que tenha tido um passado também terá um futuro. A pineal também voltará a ser um órgão importante. E as pessoas que estão nas escolas esotéricas já estão trabalhando em sua formação. Os exercícios que recebemos não agem apenas no corpo astral e corpo etérico, mas também na glândula pineal. Quando a atuação é muito eficaz, ela vai da pineal para os vasos linfáticos e de lá para o sangue. Entretanto, não somente aqueles que atualmente fazem exercícios esotéricos terão no futuro pineais desenvolvidas, mas todas as pessoas. Nas pessoas que constituirão a raça má(14) ela será um órgão para os piores e mais terríveis impulsos, e será tão grande que ocupará a maior parte do corpo. Enxerga-se muitos mosquitos constituindo uma nuvem de mosquitos; pelo fato de tantos corpos humanos semelhantes a glândulas perambularem pela Terra ver-se-ia, analogamente, a própria Terra, a partir do espaço cósmico, como uma grande glândula. Contudo, naqueles que desenvolverem sua pineal de maneira correta, esta será um órgão muito nobre e perfeito.
Vejamos agora mais de perto os exercícios que nos são dados, lembrando que são esses os exercícios que tornam nossas almas receptíveis para os raios de Sol espirituais.
Os seis exercícios colaterais servem, por assim dizer, como preparo para os verdadeiros exercícios ocultos. Naquele que se dedica aos mesmos com a seriedade e dedicação adequadas, os primeiros geram a disposição anímica necessária para colher os frutos corretos dos exercícios ocultos.
Esses exercícios não precisam ser feitos cada qual durante um mês. Foi necessário indicar um tempo. O importante é fazer os exercícios justamente nessa seqüência. Quem fizer o segundo exercício antes do primeiro não terá qualquer proveito. Pois o aspecto importante é a seqüência. Há pessoas que até acreditam dever iniciar com o sexto exercício, com a harmonização. No entanto, é possível harmonizar algo quando nada existe? Quem não quiser fazer os exercícios na ordem correta, não terá proveito deles. É como se alguém precisasse dar seis passos sobre uma pequena ponte e quisesse dar primeiro o sexto passo; da mesma forma é insensato iniciar com o sexto exercício.
(1) Extraído de: Anweisungen für eine esoterische
Schule – Aus den Inhalten der "Esoterischen Schule". [Indicações
para uma educação esotérica – Conteúdos da "Escola
Esotérica"]. GA 245. Dornach: Verlag der Rudolf Steiner Nachlassverwaltung,
1969.
(2) pp. 9-12.
(3) ‘A tarefa da Ciência Espiritual’: As anotações, sem
data, dessa palestra proferida em Berlim, provavelmente no ano de 1903 ou 1904,
são de Marie Steiner-von Sivers.
(4) ‘Dito de Hegel’. Texto literal: "O mais profundo pensamento está
ligado à figura do Cristo histórico e exterior, e o aspecto grandioso
da religião cristã é que, apesar dessa profundidade, ela
pode ser facilmente captada do ponto de vista exterior pela consciência,
e ao mesmo tempo convida a um aprofundamento. Ela serve a qualquer nível
de instrução e ao mesmo tempo satisfaz as mais elevadas exigências."
De Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte [Preleções
sobre a História da Filosofia]. Terceiro parágrafo, 2o. Capítulo:
O Cristianismo, vol. 9 da edição completa. Berlim, 3ª ed. 1848.
(5) N.T.: No original consta ‘teosófica’ ao invés de ‘antroposófica’,
pois nessa época Rudolf Steiner atuava como conferencista no seio da
Sociedade Teosófica, da qual foi o secretário-geral na Alemanha,
tendo se separado da mesma em 1913, fundando então a Sociedade Antroposófica.
Neste texto isso vale para todas as ocorrências da palavra Antroposofia
ou antroposófico(a).
(6) ‘livro antigo’ refere-se à Geometria de Euclides.
(7) N.T.: ‘Maia’ é uma antiga palavra hindu, que designa o mundo sensório
como uma ilusão, pois para os antigos hindus o mundo espiritual
apresentava uma realidade mais forte e presente do que a apresentada pelos sentidos.
(8) N.T.: No original consta o termo ‘Gemüt’, que não possui tradução
precisa para o português; entre outros, pode-se utilizar índole,
ânimo, sentimento, etc.
(9) pp. 15-21.
(10) ‘Exigências gerais...’ Foi sob essa designação
que os assim chamados exercícios colaterais foram escritos por
Rudolf Steiner em Outubro de 1906 para serem reproduzidos, pouco depois de tê-los
mencionado no ciclo de conferências Vor dem Tore der Theosophie
[Diante do portal da Teosofia] (GA 95), proferidas em Stuttgart em agosto/setembro
de 1906.
(11) Essa lenda encontra-se na seguinte obra de Goethe: Noten und Abhandlungen
zu besserem Verständnis des West-östlichen Divans – Allgemeines
[Anotações e ensaios para melhor compreensão do divã
ocidental-oriental – Aspectos gerais].
(12) pp. 103-107.
(13) Texto de anotações manuscritas de um ouvinte. Publicado pela
primeira vez na edição alemã de 1969.
(14) N.T.: não se deve compreender a palavra ‘raça’
como algo relacionado a etnia, aspecto físico, etc. Ver, por exemplo,
o ciclo de Steiner O Apocalipse de João. A revelação
bíblica de iniciação cristã. (GA 104). São
Paulo: Antroposófica, 2003, palestra de 21/6/1908, pp. 84 - 86.
Ver também:
Vinculos: