Índice geral >> Pedagogia Waldorf >> Publicações, artigos, vídeos >> Alafabetização precoce: ação das escolas Waldorf

Texto de artigo publicado na edição eletrônica de 19/7/11 0h45
do jornal "O Estado de São Paulo"

Pedagogia Waldorf segue na contramão

Carlos Lordelo
Ver original da edição eletrônica

Carolina Peron, de 18 anos, fala com entusiasmo sobre o Colégio Waldorf Micael de São Paulo, onde estuda desde o 5º ano. "Aqui é lugar de gente feliz, onde nos sentimos protegidos", contou, pouco antes de começar o ensaio da peça Campeões do Mundo, de Dias Gomes, que seria encenada pelos alunos do 12º ano dali a três dias. 12º ano? Sim, o Micael trabalha com o ensino fundamental de nove anos muito antes da promulgação da lei 11.274, de 2006. [1]

A diferença em relação a outras escolas - cujos estudantes estão no 3º ano do ensino médio - é também conceitual. O Micael, que segue os preceitos da pedagogia Waldorf, vê o aluno como ser humano em formação. Por isso, não separa os últimos três anos em um novo ciclo, mas os considera a continuidade de um processo já iniciado. [2]

Nesse caminho, os alunos têm uma série de atividades extracurriculares [3]. Mesmo no 12º ano, os estudantes continuam a frequentar aulas de música, artes e euritmia (dança baseada nos conceitos da filosofia de ensino desenvolvida pelo alemão Rudolf Steiner, a antroposofia). "Acho o currículo perfeito, faz toda a diferença ter esse ‘respiro’ entre as aulas", conta Carolina.

E o grande projeto da turma foi a apresentação da peça de Dias Gomes, que não se resumiu apenas à encenação - foram os próprios alunos que, entre outras coisas, montaram parte da estrutura do palco, confeccionaram os figurinos e fizeram a divulgação, com o acompanhamento de um diretor de teatro profissional. Campeões do Mundo ficou em cartaz durante quatro noites, no próprio colégio.

Ainda assim, todo o conteúdo do vestibular é coberto pelo Micael e os professores têm liberdade para definir a metodologia e a sequência dos assuntos. O colégio não adota material didático: os alunos são responsáveis por fazer seus próprios cadernos e usam apostilas criadas para cada aula específica. Sobre isso, Carolina diz: "seria legal ter livros para alunos Waldorf, uma mudança pequena e prática". [4]

Ela já pensou em sair do Micael, quando estava no 9º ano. "Estava meio cansada da antroposofia, queria conhecer pessoas novas e tinha outras expectativas em relação ao ensino médio", conta [5]. Foi convencida a ficar pelos pais, e não se arrepende. "Hoje, vejo que foi só uma fase de mudanças. Estudo com os mesmos colegas desde quando entrei e os professores daqui tentam identificar suas habilidades e aprofundá-las." [6]

Por falar em habilidades, Carolina quer fazer vestibular para Relações Internacionais - ela é fluente em inglês e espanhol e "entende" alemão - e também pensa em estudar culinária - seu pai diz que ela cozinha muito bem, e sua mãe é dona de restaurante. Antes, porém, pretende passar uma temporada viajando pela Europa, onde morou por quatro anos antes de voltar para o Brasil e se matricular no Micael. "Não estou aflita com a proximidade do vestibular. Se eu não passar, não vai ser o fim do mundo, como pensam os alunos de outras escolas."

Nesses sete anos de colégio com pedagogia Waldorf, ela já ouviu comentários de que "tem um bando de hippies no Micael", por exemplo. E como Carolina reage? "Eu mesma não entendia muito bem a antroposofia, mas hoje em dia eu a defendo e não me sinto parte de uma minoria. Sinto-me privilegiada." [7]

FALA, PAI!

Marcelo Peron Pereira, de 48 anos, consultor de meio ambiente

"Moramos fora do País por um período e a Carol foi alfabetizada em inglês. Quando voltamos para o Brasil, ela estava com 12 anos e nós a matriculamos num colégio perto de nossa casa, no Butantã, zona oeste. Mas ela sentia uma dificuldade danada com o português, principalmente com o enunciado de questões de matemática, que ela não conseguia entender.

Alguns meses depois, decidimos mudá-la para o Micael, por recomendação de minha cunhada. Ela é pedagoga e conhece a metodologia Waldorf. Fizemos uma visita à escola e ficamos encantados. Tanto que depois também matriculamos as duas irmãs mais novas da Carol.

O que mais pesou na nossa decisão foi a percepção de uma certa tolerância e tranquilidade do colégio para lidar com essa dificuldade com o idioma que a Carol tinha. É uma coisa que não existe em outras escolas, que muitas vezes acabam estressando a criança para que ela se adeque à média dos outros alunos.

A educação infantil numa escola Waldorf é interessante. Primeiro porque é um ambiente muito legal, do ponto de vista físico, e também pelo modo como os professores se relacionam com as crianças. Elas não são separadas por idade, por exemplo: minha filha mais nova estudou na mesma sala que uma menina três anos mais nova. [8]

Além disso, não há uma preocupação de alfabetizar as crianças rapidamente - claro que com a Carol foi diferente. Mas com as minhas outras filhas o processo aconteceu sem cobranças ou dificuldade. Fora que os alunos Waldorf têm um estudo importante de música e brincam de maneira intensiva.

Outra coisa que gostei muito, desde o início, é do fato de o Micael ser um ambiente de inclusão. Por estar inserido numa comunidade pobre, ele desenvolve uma série de ações junto aos moradores da região, dentre as quais a concessão de bolsas de estudos para crianças dos arredores.

O mais lógico é o aluno estudar de cabo a rabo numa escola Waldorf - do ensino infantil ao médio. Mas isso não é uma regra, claro. O importante, antes de matricular um filho numa escola que segue essa pedagogia, é entender os valores da escola.

Você precisa acreditar que é razoável a ideia de seu filho não precisar sair direto da escola para a faculdade, porque o Micael mantém uma relação não convencional com o vestibular. E inclusive se preparar financeiramente para isso - geralmente o aluno faz cursinho durante ou depois do 3º ano do ensino médio. Por causa disso, acaba acontecendo de muitos pais se desesperarem no meio do caminho.

Eu já estava preparado mentalmente para esse "valor" do Micael, com o qual eu concordo, mas acredito que o projeto pedagógico da escola tem de levar em conta que os alunos vão participar de um processo seletivo se quiserem fazer faculdade. Falta uma "calibragem" melhor no ensino médio para que se leve isso em consideração. O bom é que o Micael é um colégio novo e está em contínuo desenvolvimento." [9]


Colaborou: P. Tisovec.

Notas de V.W.Setzer
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[1] Na verdade, há uma defasagem de idade em relação ao ensino tradicional, pois as crianças ingressam no 1º ano Waldorf com no mínimo 6 1/2 anos.

[2] As escolas Waldorf são divididas em ensino fundamental, dos 1º ao 8º anos, e ensino médio dos 9o ao 12o ano; a tradição europeia e americana segue a mesma subdivisão.

[3] As atividades descritas não são extracurriculares. O currículo é todo obrigatório, incluindo as intensas atividades musicais e artísticas e duas peças teatrais, uma no 8º ano e outro ou no 11º ou no 12º, dependendo da escola.

[4] Não são adotados livros didáticos pois eles impõem estrutura, sequência e muitas vezes nomenclatura. Por exemplo, como herança da infeliz Matemática Moderna os livros didáticos brasileiros de Matemática continuam a chamar o conjunto de raízes de uma equação de "conjunto verdade", algo derivado da lógica matemática e totalmente inadequado para o nível escolar. Por outro lado, os cadernos feitos pelos alunos sempre expressam a individualidade de cada um, e a sequência e conteúdos introduzidos pelo professor de acordo com cada classe. É um absurdo dar-se a mesma matéria da mesma maneira em duas classes diferentes, pois cada uma tem suas características de maturidade e de interesses próprios. A pedagogia Waldorf quer formar indivíduos livres, e não massificar e padronizar mentes.

[5] É fundamental saber-se que nas escolas Waldorf não se ensina Antroposofia. Esta é uma concepção de mundo espiritualista, que não é adequada para jovens em geral antes dos 21 anos. A pedagogia Waldorf é baseada na Antroposofia, e os professores têm que estudá-la em sua formação específica, pois o currículo e a maneira de ensinar devem seguir a visão ampliada do ser humano dada por ela. É essa concepção de mundo aplicada na educação que torna a pedagogia Waldorf tão distinta de outros métodos pedagógicos, e lhe dá o sucesso que ela tem. Por outro lado, as escolas Waldorf não exigem que os pais sejam simpatizantes da Antroposofia; no entanto, é essencial que eles estejam de acordo com o método pedagógico, pois em caso contrário em geral ocorrem conflitos de pontos de vista que acabam prejudicando seus filhos.

[6] Uma das características da pedagogia Waldorf é que não há notas e repetições de ano, desde seu início em 1919. Essa é a origem do ensino continuado, recomendado pela UNESCO e por isso adotado parcialmente no Brasil nas escolas públicas. Nas escolas Wadorf, o ensino continuado funciona perfeitamente, pois os professores e as escolas são preparados para isso. Sem notas e repetições de ano, o ensino é feito sem pressões sobre os alunos; essa é uma das razões porque em sua quase totalidade eles se sentem tão bem e felizes nessas escolas. O professor deve fazer o aluno estudar por entusiasmo, e não por pressão. Sem repetições de ano, os alunos seguem juntos em uma classe durante os 12 anos da escola, o que resulta numa união e numa sociabilidade muito grande entre eles, refletindo-se na atitude social dos alunos depois que terminam a escola.

[7] Carolina deve estar se referindo à pedagogia Waldorf, e não à Antroposofia. Ver a nota [5] acima.

[8] Em geral, as escolas Waldorf adotam a seguinte subdivisão de classes para alunos pequenos, quando há um número suficiente de crianças, bem como possibilidades pedagógicas e materiais: berçário até 2 anos, maternal de 3 a 4, e jardim de infância de 5 a 6. Na verdade, a recomendação da pedagogia Waldorf é que a criança fique em casa até os 4 anos, mas infelizmente estamos em uma época em que isso é muito difícil, de modo que elas se adaptaram aos pedidos dos pais. Visitem-se bercários, maternais e jardins Waldorf para observar e compreender a diferença em relação a outros.

[9] É um absurdo uma escola organizar seu ensino visando o ENEM (exame nacional) ou um vestibular. A única coisa que esses exames provam é se o aluno sabia ou não responder as questões de uma determinada prova, no momento da mesma. Não revelam absolutamente nada sobre o entusiasmo do aluno pelo aprendizado, a capacidade de aprender, o interesse por determinada área, a tenacidade e a capacidade de concentração, o equilíbrio emocional, a sociabilidade, enfim, não revelam absolutamente nada sobre o fato de o estudante ser depois um bom aluno universitário ou, pior ainda, se será um bom profissional depois de formado. Por outro lado, se uma escola Waldorf voltar seu ensino para aqueles exames, haverá um enorme prejuízo do currículo Waldorf, que é abrangente e não especializado, dirigido para uma formação completa do aluno, tanto intelectual quando artística e social. Por sua ampla formação, é comum alunos Waldorf passarem o vestibular sem cursinho. A esse respeito e a outros pontos interessantes, veja-se o artigo " Sete mitos da inserção social do ex-aluno Waldorf".