Meditação - Por Dr. Bernardo Kaliks
Os resultados da pesquisa do suprassensível supõem, na Antroposofia, a capacidade de lidar com fenômenos não sensoriais. Tal como na consciência normal de vigília lidamos com fenômenos sensíveis (sensoriais), para lidar com o suprassensível o pesquisador deve entrar num outro estado de consciência, diferente da consciência de vigília, estado que ele atinge através do caminho da meditação; se trata de um estado de consciência no qual os limites anímicos que separam o indivíduo e o mundo se tornam menos e menos definidos, até desaparecer, o que exige uma disciplina extraordinariamente severa por parte do pesquisador para não se perder nos conteúdos tão variáveis desses mundos não sensíveis.
Um dos primeiros passos em direção à percepção do espiritual está caracterizado pelo desenvolvimento da capacidade da meditação. Neste texto nos concentraremos em dois aspectos dessa capacidade. Na meditação a pessoa lida interiormente com um conteúdo, um mantra por exemplo, no qual está condensada uma realidade suprassensível. Para fazer isso a pessoa se exclue de seu entorno para um estado interno no qual só se movimentam, só reverberam as palavras do mantra que ela examina agora dentro de sua consciência. O centro dessa consciência, e também o seu entorno neste momento, estão constituidos apenas pelo conteúdo meditativo, o mantra em questão. Na medida em
que a pessoa se exercita neste estado, ela passa a viver internamente com conteúdos de natureza não sensível, suprassensível (isso são os mantras). Literalmente se trata de um viver com esses conteúdos, observando-os, tateando-os, tentando entendê-los, se emocionando com eles. Aí se desenvolve uma vida dentro do espaço meditativo da alma, tal como as pessoas vivem na consciência normal de vigília, com os objetos que percebem ao seu redor. A pessoa que se familiariza mais e mais com esta situação interior lentamente desenvolve a percepção de ter “duas vidas”, uma focada externamente, no ambiente sensorial ou sensível, e uma focada num conteúdo “interior”, num mantra por exemplo.
Definamos o que queremos caracterizar aqui como mantra. Entendemos como mantra uma expressão verbal na qual se expressa uma realidade suprassensível, espiritual; essa realidade espiritual se expressa como esse mantra, ela se verte totalmente nele. Na medida em que a alma, na atividade meditativa, deixa reverberar o conteúdo mântrico nela própria, e ela própria reverbera no conteúdo mântrico, ela aprende a experimentar “movimentos” que lentamente se estampam nela como “estruturas” que ela antes desconhecia, e de cuja possibilidade ela nem sequer tinha alguma noção. Um mantra, por exemplo, é a Pedra Fundamental da Sociedade Antroposófica. Numa parte ele diz:
“Pois impera o Espírito Pai das alturas
Nas profundezas cósmicas gerando o ser”
O meditante coloca este conteúdo no espaço interno da alma e direciona toda a sua atenção exclusivamente para ele; tudo o que eram as suas emoções, lembranças, representações, ideias, ficam fora do espaço anímico no qual o meditante agora se encontra. Ao se interiorizar com atenção e interesse nesses dois versos, a sua alma se movimenta com as palavras “alturas” e “profundezas”. O meditante aprende a perceber esse movimento e lentamente avança assim para a percepção de estar convivendo com algo suprassensível, sem ter ainda a percepção direta da própria natureza desse elemento suprassensível. A percepção direta de um conteúdo suprassensível no espaço meditativo é algo que irá acontecer muito mais para frente, e dependerá fundamentalmente do destino individual da pessoa que medita. Mas, até o ponto que descrevemos aqui pode chegar qualquer pessoa que tenha alguma relação com a Antroposofia.
Cabe ainda caracterizar melhor o espaço anímico no qual se processa a atividade meditativa. Se trata de um espaço anímico diferente daquele no qual se processa a consciência normal de vigília. O espaço anímico da vida meditativa é um espaço de silêncio, e este espaço de silêncio deve estar permeado por uma certa qualidade de veneração. Esta veneração é uma qualidade que o meditante deve desenvolver no dia a dia da consciência comum de vigília. E o meditante deve estar muito alerta para aproveitar qualquer momento favorável à aparição do sentimento de veneração. Um dos maiores empecilhos para aquele que pretende iniciar um caminho meditativo é a falta de veneração. As qualidades anímicas que aparecem no horizonte da consciência meditativa são tão sutis que qualquer movimento que não seja sustentado pelo sentimento de veneração as apaga e as extingue. Na atualidade existe uma tendência muito pronunciada que é a principal dificuldade para conquistar algo de veneração: se trata da facilidade com a qual as pessoas escarnecem ou riem do que é nobre, do sublime, do digno de respeito; isto é algo que a pessoa que pretende meditar deve vetar a si própria.
Dentro do amplo tema da meditação devemos considerar também o papel que tem os exercícios de concentração. Um deles consiste em se concentrar num determinado pensamento cujo conteúdo não faça sentido. Aqui, inicialmente, o foco do exercício é diferente ao foco da meditação de um mantra. No pensar comum, quando ele se processa como normalmente acontece na consciência de vigília, temos apenas a percepção de pensamentos, ou representações, que se sucedem um atrás do outro, fluem simplesmente. Essa corrente de pensamentos que geralmente acontece (infelizmente) quase sem a participação da nossa vontade, é o que chamamos de pensar. Porém, a atividade própria do pensar não entra na nossa consciência normal de vigília. Mas, existem situações nas quais podemos pressentir a sua existência, a existência dessa força, dessa atividade do pensar: isso pode acontecer quando fazemos o esforço para resolver um problema de matemática, ou quando tentamos entender um texto filosófico complexo. Aqui, o esforço por ter um raciocínio coerente nos pode levar a sentir que sim: que algo assim como o pensar existe. Mas, para colocar o pensar sob a nossa observação, temos que procurar, dentro da consciência de vigília, um estado de “exceção”. Esse estado de exceção consiste em colocar dentro da consciência, ocupando o espaço da consciência, um pensamento que careça de sentido e que ao mesmo tempo seja facilmente abarcável. Em várias oportunidades Rudolf Steiner recomendou se concentrar no pensamento: “sabedoria vive na luz”. Aqui a pessoa dirige toda a sua atenção e interesse à observação interior desse conteúdo: aí, a corrente do pensar que normalmente desaparece na sequência de pensamentos e representações deixa de circular, se detem, por assim dizer, num único pensamento que o exercitante fixa e conserva como único conteúdo no espaço de sua consciência. Nesse estado a pessoa deve tentar se manter alguns minutos. Aqui, a força do pensar, como não circula, começa a se “condensar” dentro da consciência do meditante, como uma força real, porém, não sensível, mas suprassensível. O leitor mais avisado identificará claramente que nesta força do pensar, assim processada agora, estamos nos movimentando no plano daquilo que na Antroposofia é identificado como o etérico, mas, obviamente, não naquele plano do etérico que urde a vida biológica do nosso corpo, mas naquele plano do etérico metamorfoseado em direção da consciência: isso é o que identificamos como o pensar. E fazendo este exercício repetidamente, essa força se condensará mais e mais na consciência meditativa, até o ponto, como diz Rudolf Steiner, em que aí se plasmam imagens que lenta e sutilmente surgem perante a consciência do meditante. Aí nos encontramos naquele estado de consciência que na Antroposofia conhecemos com o nome de “consciência imaginativa”. Neste estado o meditante pode “ver” o suprassensível pela primeira vez, mas ele não sabe ainda o que querem dizer essas imagens, o que elas representam. Neste ponto a pessoa deve ter uma severa disciplina interior para não ser “sugada” pela tentação de que pode “entender” essas imagens, de “saber o que elas significam”; isso é algo que só será possível bem mais adiante, e graças a outras capacidades que deverão ser desenvolvidas.
Então, até agora temos examinado dois lados da vida meditativa: um se processa no seio de conteúdos mântricos que representam condições, entidades espirituais, condições espirituais que vão “modelando” a alma enquanto lidamos com elas; e o outro lado leva, através da concentração, para a percepção de si próprio como uma entidade suprassensível, e bem mais tarde para a percepção de si próprio como espírito no espaço de outros seres espirituais. E também foi mencionado que esse espaço meditativo precisa estar permeado pelo sentimento de veneração, do contrário o suprassensível não se processará nele. O leitor deve ter presente que essa “aura” de veneração deve estar presente aproximadamente como no mundo exterior estamos envolvidos e permeados pelo ar que respiramos.
Porém, agora devemos agregar algo muito importante, sem o qual o caminho meditativo pode ter conseqüências desfavoráveis e pouco saudáveis para a alma.
A vida meditativa vai tornando a alma cada vez mais sensível, extraordinariamente mais sensível e ligada a aspectos muito mais sutis dos que normalmente percebemos na vida comum. E a alma vai vinculando com esses conteúdos a vivência de estar numa esfera de ordem “superior”, numa região mais “elevada” da existência. Com isso, os conteúdos que se processam na vida anímica em relação com os assuntos e problemas do dia a dia (ir ao banco, arrumar o carro, responder E-mails, pagar uma multa, lidar com funcionários, etc., etc., etc.) podem começar a ser olhados como algo “inferior”. De fato, as piores distorções anímicas podem acontecer desta maneira, levando inclusive para verdadeiras aberrações, particularmente nos relacionamentos com as pessoas.
O poeta Novalis, num dos seus “Aforismos para a Vida Interior”, caracteriza isto de uma maneira notável: “Todo impulso absoluto para o perfeito e acabado é uma doença tão logo se mostra antipático e destrutivo perante o imperfeito e inacabado”.
Por esta razão, a pessoa que se movimenta dentro de uma vida meditativa deve cuidar energicamente de sua “saúde da alma”, para o qual os exercícios conhecidos como “exercícios colaterais” ou complementares representam algo de tal importância que eles devem passar a fazer parte do dia a dia da pessoa, tal como se alimentar faz parte do dia a dia. Aqui eles serão apenas mencionados, mas, o meditante deve saber que sem eles as chances de sustentar uma cultura humana não são possíveis. Se trata dos seguintes seis exercícios: 1) a conquista de um pensar completamente claro; 2) o domínio progressivo da vontade; 3) a conquista de uma certa equanimidade interior perante as oscilações entre alegria e tristeza, prazer e dor; 4) o desenvolvimento da positividade; 5) o desenvolvimento de uma imparcialidade no sentido de deixar sempre uma porta aberta para o fato de ser possível algo que não reconheceriamos como possível; 6) viver com todos os exercícios anteriores de uma forma ordenada e sistemática; e com o qual a alma começa a dar os seus primeiros passos no sentido de uma profunda transformação. A ocupação diária e sistemática com estes exercícios neutralizará qualquer unilateralidade ou desequilibro que possa vir da vida meditativa.
Mas, me parece útil terminar esta exposição tão breve chamando a atenção ainda para dois grandes temas relacionados com a meditação.
Um deles relaciona-se com uma característica da alma do meditante que Rudolf Steiner examina no capítulo “As condições para a vida oculta” de seu livro “O Conhecimento dos Mundos Superiores”. Uma dessas condições consiste em que o meditante deve levar para a sua consciência a percepção de que os seus pensamentos e os seus sentimentos têm para o mundo um significado tão grande como o têm os seus atos. E isto vale tanto para os pensamentos negativos como para os bons pensamentos. Se estendermos isto para os conteúdos da vida meditativa podemos pressentir que a vida meditativa não só tem importância para aquele que a pratica, porém ela pode ter uma importância que vai além disso, ela pode ter alguma importância para o mundo. De fato, os mundos suprassensíveis e suas entidades reverberam com a atividade meditativa do ser humano, e o meditante, na medida em que avança no aprofundamento de sua vida meditativa irá se tornando cada vez mais consciente dessa realidade, até o ponto de chegar o momento no qual, ao entrar no estado meditativo o fará, por essa razão, com o sentimento de uma nova responsabilidade. Trata-se, repetimos, de um sentimento que irá surgindo gradual e naturalmente na medida em que o meditante avança por este caminho.
O outro tema tem a ver com o fato, que aqui apenas mencionamos, bastante expressivo da procura cada vez maior, na atualidade e no mundo todo, por práticas meditativas. Este fenômeno relaciona-se com esse deslocamento gradual das forças formativas etéricas do ser humano de sua organização física, o que faz com que instintivamente as pessoas procurem por práticas que de alguma maneira respondam a esse fenômeno: práticas meditativas que essencialmente trazem um novo equilíbrio para alma e que são experimentadas como algo que restabelece a saúde. A Antroposofia deve estar aqui de olhos muito abertos e com uma atitude extraordinariamente imparcial e receptiva, pois ela pode contribuir muito para que este impulso tão atual se desenvolva de uma maneira salutar, ficando inserido nas exigências que a vida atual traz ao ser humano. Realmente, a situação atual coloca ao ser humano a necessidade de uma expansão de sua consciência em direção a elementos que não são mais de caráter sensível, e para o qual a meditação é o meio natural para essa expansão.
Por Dr. Bernardo Kaliks