Tomando por base as indicações
dadas por Rudolf Steiner sobre o desenvolvimento da criança e
do jovem, as quais deram origem à Pedagogia Waldorf por ele instituída,
tentamos demonstrar nesse artigo que o conhecimento e a aplicação
desses ensinamentos oferecem ao ser humano tudo o que ele necessita
para um desenvolvimento sadio e harmonioso de sua entidade (corpórea,
anímica e espiritual); e que quando, porém, não
são observados, dão ensejo a desajustes que podem manifestar-se,
entre outros, em drogadicção.
UNITERMOS: setênios, sentidos, níveis
de consciência, atividades da alma, Pedagogia Waldorf, drogas.
Summary
Rudolf Steiner’s indications on child
development constitute the fundations of Waldorf Education, introduced
by him. In this article we show that their knowledge and practice offer
the growing human being everything it needs to develop its complete
entity (body, soul and spirit) in a healthy and harmonic way. But if
these indications are not observed, disorders may result that, amidst
others, can manifest themselves as drug addiction.
KEY WORDS: seven year periods, senses,
consciousness levels, soul activities, Waldorf Education, drug addiction.
1. Introdução
Certamente a educação não
é um processo terapêutico, mas não podemos ter a
mesma certeza quanto ao seu papel preventivo, profilático. E
talvez seja na mais tenra idade, quando aparentemente a criancinha "nada
percebe", que esse efeito preventivo seja mais intenso. Os frutos
de eventuais erros, falhas, omissões, apareceriam então
mais tarde.
Atualmente se constata que um número
cada vez maior de adolescentes está recorrendo ao uso de drogas,
e que isso começa cada vez mais cedo. As perguntas que surgem
no sentido de descobrir as possíveis causas têm, muitas
vezes, suas respostas em lares desfeitos, pais agressivos, etc. Mas
será que estas explicações são suficientes?
Será que nos satisfazem plenamente? Diante delas sentimos uma
certa impotência, pois sabemos como é difícil agir
sobre fatores externos. Podemos sentir pena e compaixão diante
da situação, tentaremos proteger nossos próprios
filhos das "más companhias", mas o que mais está
ao nosso alcance? Podemos questionar de outro modo, levando em conta
a própria criança, e não procurando a causa no
seu meio ambiente. Por exemplo: será que a criança está
sendo compreendida adequadamente no seu processo evolutivo? Estará
sendo atendida em todos os âmbitos possíveis - o físico,
o anímico, o espiritual? Estará sendo estimulada suficientemente
ou um excesso, ou sendo cobrada deficientemente ou em excesso? Muitas
outras questões semelhantes podem ser formuladas, e em algumas
situações podemos atuar positivamente.
Faremos uma tentativa de esboçar
o desenvolvimento sadio da criança de acordo com a visão
que nos foi legada por Rudolf Steiner - fundador da Ciência Espiritual
ou Antroposofia, no início deste século -, procurando
caracterizar quais são as necessidades da criança e do
jovem em cada uma das diferentes fases evolutivas e analisar os possíveis
desvios que atualmente estão ocorrendo.
Antes de mais nada, cabe salientar
que qualquer pessoa que lide com crianças está assumindo
o papel de educador. Esta não é uma prerrogativa apenas
de professores formados, habilitados a trabalhar com as diferentes faixas
etárias. Portanto, como quase todos os adultos têm contato
com crianças e jovens, eles deveriam estar bem preparados para
não cometer falhas graves. Nesta época da comunicação,
em que existem tantas informações disponíveis,
não podemos admitir um "crime por omissão" nesse
âmbito.
2. O desenvolvimento da criança
nos três primeiros setênios
2.1 Os setênios
Na antiga cultura grega costumava-se dividir
a vida humana em dez períodos de sete anos ou setênios.
No início deste século Rudolf Steiner retomou essa idéia,
que hoje fundamenta o ensino das escolas que aplicam a Pedagogia Waldorf
(iniciada por Steiner em 1919 na cidade de Stuttgart, Alemanha), mas
que também tem larga aplicação nos estudos biográficos
realizados por psicólogos e médicos que trabalham orientados
pela Antroposofia.
Para o período da infância
e adolescência, importam-nos os primeiros três setênios,
abrangendo as faixas de 0 a 7 anos, de 7 a 14 anos e de 14 a 21 anos.
Naturalmente essas idades são aproximadas, podendo-se notar que
hoje em dia muitos fatores antecipam alguns acontecimentos que, não
muito tempo atrás, ainda coincidiam com essas idades. Nas considerações
que se seguem, abordaremos características marcantes de cada
setênio, as quais obviamente não se passam da mesma forma
durante a fase toda, havendo aspectos de um período anterior
que ainda se manifestam num posterior, bem como antecipações
de características futuras.
Costumamos considerar os três
primeiros setênios como o período em que a criança
e o jovem recebem a educação. Depois disso o adulto ainda
pode receber informações importantes para sua vida, como
por exemplo no ensino universitário, mas não pode mais
ser educado. Todas as falhas e omissões ocorridas na infância
e adolescência podem ser compensadas, corrigidas, mas requerem
um esforço da própria pessoa. Depois dos 21 anos de idade
qualquer mudança, qualquer evolução é possível
apenas por meio da auto-educação, um processo nem
sempre fácil, e que dura a vida toda.
Podemos notar que ao final de cada
setênio a criança ou o jovem alcançou um certo grau
de amadurecimento:
- Aos 7 anos, ainda em muitos países,
inclusive em nossa rede de ensino público, a criança
atingiu a maturidade escolar, isto é, ela está
pronta, madura, para receber um ensino, para aprender.
- Aos 14 anos podemos considerar que o
jovem está em plena puberdade - ele alcançou a maturidade
sexual.
- A grande maioria dos países ocidentais
considera que o ser humano é adulto, plenamente responsável
por seus atos, aos 21 anos. Fala-se na maioridade ou também
na maturidade social.
2.2 A relação da criança
e do jovem com o mundo
No primeiro setênio a criança
está completamente aberta, entregue ao mundo. Ela ainda
não tem experiências nem filtros que lhe permitam bloquear
uma impressão advinda dele. Assim como nossos órgãos
dos sentidos estão totalmente abertos para o mundo, recebendo
as impressões sensoriais de acordo com sua especialidade (audição,
visão, paladar, etc.), mas sem possibilidade de elaborar um julgamento
– o que já é uma função superior -, também
a criancinha é comparável a um grande órgão
sensorial. Como ela ainda não desenvolveu as capacidades para
analisar, julgar o que a invade por meio dos órgãos sensoriais,
nem tampouco sabe como proteger-se de percepções inadequadas,
ela armazena tudo isso em seu subconsciente. Cabe, portanto, ao adulto
cuidar para que a criancinha esteja num ambiente que não apenas
lhe permita ter percepções sensoriais não apenas
apropriadas, mas que sejam de natureza a estimular o desenvolvimento
sadio dos órgãos dos sentidos. Sabemos que a exposição
prolongada a ruídos muito fortes danifica os ouvidos, o mesmo
ocorrendo com os outros sentidos.
Tendo adquirido um certo conhecimento
do mundo, a criança do segundo setênio agora interage
com ele, reagindo com alegria, tristeza, simpatia, antipatia, prazer,
desprazer, etc. aos estímulos que lhe chegam. Agora já
não são mais tanto os sentidos que necessitam de um cultivo:
agora é a vez dos sentimentos. Vivenciando a beleza, o entusiasmo
e - porque não? - a tristeza e o feio, que também fazem
parte da vida, porém numa intensidade ainda suportável
para ela, a criança volta seu interesse para o que a rodeia,
identificando-se com o que gosta e rejeitando o que não lhe agrada.
No terceiro setênio o jovem
separa-se do mundo porque quer realmente conhecê-lo. Para
tanto precisa desenvolver uma objetividade, uma capacidade de fazer
observações, comparações, discernimentos,
julgamentos. Ele não aceita as coisas simplesmente como lhe são
apresentadas, e sim tem uma atitude analítica e crítica;
está realmente fechado para o mundo, vendo-o de fora.
2.3 Qual é o método
inato de aprendizado?
Se quisermos corrigir ou repreender uma
criancinha, de nada adianta apelar para sua razão, "passar-lhe
um sermão"; o resultado não será satisfatório.
Isso se deve ao fato de no primeiro setênio ela ainda não
ter a capacidade de compreender os pensamentos dos adultos traduzidos
em conceitos. Ela compreende atitudes, ações, e o seu
aprendizado se faz pela imitação. Como já
vimos, a criança está totalmente aberta ao mundo e repete
tudo o que se passa à sua volta; aliás, é assim
que ela aprende a andar, a falar, etc. Disso resulta uma responsabilidade
enorme para o educador: sendo o modelo segundo o qual a criança
irá portar-se, ele tem de ser um modelo digno de ser imitado.
É inconcebível exigir que uma criancinha faça algo
que desconheça, ou ainda que deixe de fazer algo que constantemente
veja ocorrer à sua volta.
Tampouco no segundo setênio
atingiremos a criança satisfatoriamente por meio de explicações
conceituais. Nesse período, ela atenderá melhor às
solicitações feitas quando seus sentimentos estiverem
envolvidos. Ela fará suas lições de casa para agradar
à professora (ou não deixá-la triste) e não
por compreender que isso seja importante para seu aprendizado. Aliás,
agora seu aprendizado se faz pelo interesse, pela admiração
que as coisas causam. A tarefa do educador é trazer o mundo
á criança de modo que ela se entusiasme pelo que lhe é
revelado, tenha profundas vivências na área do sentir.
Por outro lado, o educador deve mostrar claramente quais comportamentos
da criança lhe agradam e quais considera inadequados. Nessa fase,
a postura do adulto deve ser de autoridade amorosa - autoridade
no sentido de conhecer o mundo e saber o que é bom ou não
para a criança, jamais no sentido do autoritarismo. E por saber
o que é bom ou não para a criança, independentemente
de sua inclinação pessoal, ele atua de acordo com isso,
e não por sua simpatia ou antipatia.
Somente no terceiro setênio o jovem
pode ser educado por meio de explicações conceituais,
intelectuais; agora ele está em condições de compreender
o que o adulto lhe diz (antes a criança compreendia o
que o adulto fazia e sentia). Por querer entender tudo que o rodeia,
o adolescente espera do educador os elementos necessários para
que ele próprio aprenda a observar, julgar, formar uma opinião
própria. Nesse momento o aprendizado se faz por meio do julgamento
crítico, e o adulto, para poder educar o jovem, deve ser
uma pessoa que também procure aprimorar seus conhecimentos com
seriedade, procure aperfeiçoar-se; por seu empenho, pelo trabalho
que realiza em si, o jovem o considerará alguém digno
de respeito – e, inconscientemente, é isso que o adolescente
espera dos adultos.
2.4 Os níveis de consciência
A criancinha ainda é um ser bastante
inconsciente. Nos primeiros meses de vida passa a maior parte do dia
dormindo, e somente aos poucos vai despertando cada vez mais, percebendo
melhor seu mundo circundante, para depois interagir com ele. À
medida que cresce, seu grau de consciência vai aumentando, e ela
se torna mais consciente de si mesma; e no final do terceiro setênio
o jovem se nos apresenta bastante consciente de si, do mundo, dos problemas
que existem à sua volta, etc. Cabe dizer que ainda na idade adulta
podemos continuar a desenvolver nossa consciência, e que esse
processo evolutivo nos acompanha até a morte.
2.5 As atividades da alma
Rudolf Steiner nos apontou três
atividades que se manifestam e têm seu substrato no corpo, mas
cuja origem reside num outro âmbito de nossa existência
- a alma - que não consegue ser pesquisado nem demonstrado pela
ciência tradicional, mas que todos nós percebemos como
uma parte inerente do nosso ser. Trata-se das atividades do pensar,
do sentir e do querer. Todos nós temos a experiência
imediata do fato de pensarmos, sentirmos e agirmos. Gostaríamos
que aqui o termo "querer" fosse entendido como algo relacionado
a um ato volitivo, e não a um desejo, pois então estaríamos
na esfera do sentir. Podemos relacionar essas três atividades
aos graus de consciência: para desenvolvermos a atividade do pensar,
temos de estar plenamente conscientes; o sentir se passa num âmbito
similar ao do sonho, da semiconsciência, onde parcialmente ficamos
entregues e parcialmente temos representações mentais;
já atos volitivos dormem, como num estado de inconsciência.
Para que isso fique bem claro: nós temos uma representação
mental (pensar, consciência) do ato que queremos realizar - por
exemplo, pegar uma caneta na mesa; a motivação é
consciente, contudo não temos a menor idéia do que se
passa em nossos músculos, ossos, articulações,
etc., para que o movimento para pegar a caneta seja efetuado - ou seja,
ele é realizado de modo totalmente inconsciente para nós.
Sabemos muito bem que, para um movimento ser harmonioso e bem executado,
quanto maior for o automatismo, melhor. Automatismo significa inconsciência.
Já vimos que no primeiro setênio
a criança ainda está bastante inconsciente. Observando
bem, notaremos que ela conquista o mundo a partir dos movimentos, que
são justamente as manifestações da esfera volitiva.
É graças à movimentação que ela adquire
a postura ereta, aprende a andar, vai conquistando o espaço tridimensional
até estabelecer a dominância de um dos hemisférios
cerebrais, por volta dos sete anos de idade. Interessante é notar
como no mundo todo as crianças desenvolvem os mesmos jogos, as
mesmas brincadeiras infantis. Se repararmos bem, podemos observar que
todos eles servem justamente para desenvolver a parte motora, adquirir
um domínio sobre o espaço (vivenciar o em cima/embaixo,
direita/esquerda, frente/atrás), por meio do pular corda, jogar
bola, etc., bem como desenvolver a motricidade fina por meio de jogos
como rodar pião, soltar pipa, o jogo dos saquinhos ou das pedrinhas,
pega-varetas, etc. Portanto, educar no primeiro setênio significa
proporcionar à criancinha todos os meios e possibilidades para
que ela possa realizar seu desenvolvimento motor. Como ela aprende a
movimentar-se? Imitando!
O segundo setênio é a
fase em que se desenvolve principalmente o sentir, uma atividade que
transcorre entre polaridades: feio/bonito, prazer/desprazer, simpatia/antipatia,
riso/choro, alegria/tristeza, etc. Em nosso organismo essas polaridades
manifestam-se principalmente nas atividades rítmicas da respiração
e da circulação (inspiração/expiração,
sístole/diástole). Estamos no período em que a
inconsciência não é mais tão profunda, mas
ainda não podemos falar de consciência total: observamos
aspectos dos dois extremos, e poderíamos falar de um estado de
semiconsciência. Mencionamos antes que a criança reage
com seu sentir ao que lhe advém do mundo (ou lhe é relatado
sobre ele). Temos que interessá-la, entusiasmá-la, mas
se o ensino for muito abstrato, conceitual, estaremos matando essas
forças de entusiasmo. Cabe, portanto, ensiná-la de modo
que, a partir de vivências que envolvam os sentimentos, ela consiga
aprender. Isso é possível por meio das artes. Cumpre lembrar
que no período do ensino básico a criança aprende
uma série de linguagens: escrita, matemática, línguas
estrangeiras, música, pintura, desenho. Nas escolas Waldorf,
o término dessa fase se dá com a encenação
de uma peça de teatro, em que muitas linguagens diferentes, inclusive
a oral, são utilizadas. A expressão mágica para
a educação nessa faixa etária é: ter vivências.
Tudo o que a criança experimentou
pela motricidade (grossa e fina) no primeiro setênio e pelos sentimentos
no segundo setênio quer, no terceiro setênio, ser compreendido
mediante conceitos elaborados pelo pensar abstrato. Também a
formação de opinião, o discernimento, etc., precisam
ser treinados, exercitados. Isso pode levar muitos pais ao desespero.
Quando seu filhinho está aprendendo a andar, eles lhe dão
a mão até que ele esteja seguro o suficiente para andar
sozinho. Por que não fazem o mesmo quando seu filho adolescente
está aprendendo a pensar? Ora, ele necessita treinar sua argumentação,
e nada melhor do que discutir com os pais, cujas opiniões ele
conhece tão bem, defendendo então um ponto de vista oposto.
Muitos problemas poderiam ser evitados se pais e educadores vissem muitas
atitudes aparentemente rebeldes como uma manifestação
de um exercício importante e necessário para o jovem,
e agissem de acordo, por exemplo, defendendo pontos de vista que não
fossem os seus habituais. Também é muito importante que
os jovens se familiarizem com diferentes pontos de vista sobre um mesmo
assunto e escolham aquele que estiver mais condizente com seu próprio
ser. Caso contrário, ao serem levados a crer que apenas uma opinião
seja a correta, eles estarão sendo educados com preconceitos,
para serem preconceituosos. Se os adultos não impuserem suas
opiniões, mas permitirem que o jovem, em liberdade, escolha a
sua própria, estarão respeitando o indivíduo em
formação e, ao mesmo tempo, serão respeitados por
ele.
Em resumo: numa situação
ideal, deve-se oferecer à criança e ao jovem o que estiver
adequado ao seu grau evolutivo, respeitando o ritmo de desenvolvimento
genérico e individual. Rudolf Steiner ainda indica as qualidades
que a criança deve experimentar em seu contato com o mundo: no
primeiro setênio, quando ela descobre o mundo através de
seus sentidos, este deve parecer-lhe bom; quando, no segundo
setênio, os sentimentos moldam a vida da criança, ela deve
vivenciar que o mundo é belo; em sua busca de compreensão,
por meio do pensar crítico, o jovem no terceiro setênio
deve concluir que o mundo (não apenas a natureza, mas também
as pessoas que o cercam) é verdadeiro.
3. A realidade em que a criança
e o jovem estão inseridos
Olhando à nossa volta, podemos
notar facilmente que a sociedade ocidental não está provendo
ao ser em desenvolvimento tudo o que ele necessita – seja por não
possuir uma imagem completa desse ser, seja porque os adultos estão
preocupados com outros assuntos mais prementes, seja por se delegar,
desde muito cedo, a educação dos filhos a terceiros, etc.
Uma análise sem preconceitos talvez nos mostre que "antigamente"
muitas coisas eram melhores.
O estilo de vida da sociedade ocidental
está voltado para um consumismo, um conforto, uma concorrência
desenfreados, e assim nossos pequenos já são vítimas
desde cedo. Poucas semanas após o nascimento do bebê, as
mães têm que voltar ao trabalho; as criancinhas são
depositadas em creches ou berçários, onde suas necessidades
básicas são atendidas - mas, até mesmo pela impossibilidade
de atender a um número maior de crianças ao mesmo tempo,
muito de seu desenvolvimento motor deixa de ser estimulado. Chegando
em casa, os pais têm de cuidar dos afazeres domésticos;
nada mais prático do que a "babá eletrônica"
para terem sossego. A vida nas grandes cidades, devido às distâncias
a serem percorridas e à violência reinante, torna o uso
do automóvel uma necessidade, não permitindo que as crianças
brinquem na rua. Muitas famílias residem em prédios de
apartamentos, muitas vezes restritos, onde a criança não
tem espaço para treinar sua motricidade e, para que fique ocupada,
assiste à televisão ou brinca com video-games. Neste último
caso ocorre realmente muita atividade (na tela), enquanto a própria
criança se especializa em executar movimentos mínimos,
robotizados, com seus dedos. Por outro lado, na cultura dos sintéticos
os sentidos não se desenvolvem: os brinquedos de plástico
(duro, frio, liso) não desenvolvem o tato; alimentos muito industrializados
têm sabor muito parecido, quando não químico. Já
os ruídos em alto volume danificam o órgão auditivo;
além disso, quase não se distinguem nuances de cores (já
houve povos que conseguiam distinguir centenas de tonalidades de vermelho…);
e, muitas vezes, nem mesmo numa floricultura se sente o perfume das
flores, eliminado pelo cultivo cheio de substâncias químicas,
isso sem falar nos odores de uma grande cidade, que paralisam o olfato
em vez de estimulá-lo. Aquilo que deve ser desenvolvido nessa
faixa etária - a motricidade grossa e fina, bem como os órgãos
dos sentidos - não recebe o alimento necessário, e sabemos
que órgãos não-utilizados se acabam atrofiando.
No segundo setênio, as crianças
geralmente recebem um ensino intelectual, conceitual, pouco vivencial,
e, em vez de se interessarem pelo mundo, acham a escola chata e trabalhosa.
Exige-se delas o que elas nem têm condições de dar
- porque a abstração faz parte do terceiro setênio
-, e deixa-se de desenvolver as capacidades nascentes, criando pessoas
com grandes dificuldades ou até incapacidade de desenvolver e
lidar com os sentimentos. Com muita freqüência também
se estabelece a concorrência (afinal, "a vida é assim
mesmo"): cada um quer (ou espera-se dele que queira) ser melhor
do que o coleguinha, e em vez de se desenvolverem habilidades sociais
criam-se pessoas egoístas, que antes de tudo pensam em seu proveito,
mesmo que para isso tenham que arruinar o outro. Além disso,
as crianças ficam expostas aos horrores do mundo, da sociedade,
à crueldade e à violência, tanto na vida real como
principalmente pela mídia – e, em vez de belo, o mundo lhes parece
bem horrível. É verdade que não podemos nem devemos
criar as crianças numa redoma; mesmo assim, podemos protegê-las
de um excesso de vivências negativas, pois algumas são
inevitáveis. Um erro bastante comum é deixar que no segundo
setênio as crianças tomem decisões e sejam responsáveis
pelo que fazem. Nessa faixa etária, ainda são os adultos
que sabem o que é bom para elas ou não, e no fundo
de seu ser a criança ainda espera ser dirigida por eles, sem
muitas explicações, desde que possa confiar nesses adultos.
Por outro lado, aos poucos ela pode sentir que suas atitudes
têm conseqüências.
Um outro aspecto que chama a atenção,
atualmente, é o tipo de lazer que as crianças do segundo
setênio têm tido: parecem ser atividades que ainda trinta,
quarenta anos atrás cabiam ao terceiro setênio. Se hoje
uma criança vai a bailinhos aos nove anos, começa a "ficar"
com dez, o que lhe restará fazer quando tiver quinze ou dezoito
anos de idade? Se entre sete e catorze anos ela já passou por
todas as emoções possíveis (apropriadas ou não
para a faixa etária), que tipo de emoção irá
procurar na adolescência? Por que tantos jovens praticam esportes
'radicais"? Por que buscam experiências de "quase morte",
deixando-se cair dezenas de metros, presos a um cabo elástico?
Por que jovens de classe média assaltam, matam e ainda dizem
ter estado apenas "brincando" ou querendo saber qual é
a "sensação de matar alguém"?
No terceiro setênio, o adolescente
encontra-se numa fase em que deixou de ser criança e ainda não
é adulto - uma situação realmente complicada. Sua
autoconsciência desperta aos poucos, ele sente grande insegurança
e necessita de muita compreensão do adulto. Ele começa
a dar-se conta de que as gerações anteriores, em vez de
melhorarem o mundo, estão a destruí-lo, de que as relações
sociais e familiares estão em ruínas, as perspectivas
profissionais são pequenas, o desemprego aumenta diariamente
e assim por diante. Ele tem tanta força, tanta vontade de mudar
as coisas, mas falta-lhe a experiência de vida, e ao tomar atitudes
intempestivas é, freqüentemente, mal compreendido. Onde
está o mundo verdadeiro? Ele busca ideais – aliás, tem
grande necessidade deles, pois quer e precisa lutar por algo -, mas
será que os adultos, tão envolvidos consigo mesmos, conseguem
interessá-lo em verdadeiros ideais? Querendo ser adulto, ele
reivindica (e freqüentemente consegue) muitos "direitos"
próprios dos adultos, como obter carteira de motorista aos dezoito
anos (até pleiteando que seja possível aos dezesseis),
ter direito a voto (de que tipo de discernimento e julgamento ele é
capaz, se ainda está desenvolvendo essas capacidades?), mas também
lhe são impostos certos "deveres" dos adultos, como
o serviço militar. Por outro lado, em nosso país o casamento
antes dos 21 anos ainda exige autorização dos pais…
Será que não é por
falta de ideais nobres que o jovem acaba criando ídolos para
poder "adorar" (cantores, esportistas, gente que consegue
realizar algo)? Os movimentos sociais, o movimento hippie dos anos 60,
as revoltas estudantis de 1968, o movimento ecológico, a recusa
de prestar o serviço militar, o Greenpeace, são alguns
dos exemplos das lutas empreendidas pelos jovens neste século,
alguns ideais pelos quais até chegaram a dar suas vidas. Justamente
quando deveria estar tomando decisões importantes sobre o encaminhamento
de seu futuro, o jovem não vê sentido no que o mesmo futuro
lhe oferece, se é que lhe oferece algo. Como suportar tudo isso?
4. Fantasia e criatividade
A criancinha, ainda tão pouco consciente
do mundo que a rodeia, muitas vezes ainda vive num "mundo de fantasia",
o que não está errado. Tanto é que ela pode confundir
fantasia e realidade. Essa fantasia pode ser comparada a um mundo de sonhos,
e, se atentarmos bem, trata-se de um mundo que se apresenta sob forma
de imagens. A criança pequena tem muita facilidade de criar imagens,
sendo esse um meio de que podemos dispor na educação. Por
meio de histórias inventadas, que descrevam determinadas situações
referentes a um comportamento inadequado, podemos educar com muita eficiência,
usando uma linguagem compreendida pela criança (as imagens) em
vez de explicações moralizantes, que estejam fora do alcance
de sua compreensão. Mas também essa capacidade de formar
imagens tem de ser treinada e mantida. Por isso as crianças gostam
tanto de ouvir histórias, contos-de-fadas. Quanto menos ilustrações
houver, quanto mais viva for a descrição feita por quem
contar a história, maior será a riqueza de imagens que a
criança desenvolverá em seu íntimo. Todavia, os filmes
de contos-de-fadas produzem uma paralisia dessa capacidade, pois a imagem
vem pronta - a criança não fez esforço algum para
produzi-la, e essa imagem é indelével e imutável.
Toda vez que ela for se lembrar da Cinderela, mesmo já adulta,
surgirá aquela imagem de Walt Disney. Além disso, todas
as crianças que assistiram ao mesmo filme ou viram as mesmas imagens
em livros guardarão essa mesma imagem, ou seja, produz-se a massificação
de imagens. Se, por outro lado, numa classe o professor contar vivamente
a história, cada criança criará a sua imagem totalmente
individual dos diferentes personagens, desenvolvendo uma vida interior
rica e diversificada. Também aqui vale a constatação
de que a capacidade se desenvolve com o uso e o treino. A maior agressão
à qual as crianças estão expostas, nesse âmbito,
é a televisão: as imagens irreais, bidimensionais, chegam
prontinhas: basta consumi-las (atitude esperada na sociedade de consumo).
Como a criancinha não tem a capacidade para fazer um julgamento
crítico, toma tudo isso como realidade, podendo tornar-se uma alienada
em relação mundo verdadeiro caso sofra essa influência
de maneira excessiva. Quantos acidentes fatais já ocorreram porque
as crianças se julgavam capazes das mesmas proezas dos heróis
da televisão!
Mas também os adultos necessitam
de imagens interiores; é importante, em alguns momentos, "sonhar
acordado". Aliás, todo processo artístico, toda criatividade,
de um modo geral, está relacionada com a produção
de imagens; mas isto só é possível quando essa
capacidade é treinada e cultivada. A televisão, os gibis,
um excesso de ilustrações, atrofiam essa aptidão.
Como, então, um adulto que desde a infância esteja habituado
a receber imagens prontas, "de fora", poderá continuar
a recebê-las? Essa questão pode ter uma eventual resposta
ao estudarmos gráficos realizados nos Estados Unidos, nos quais
a curva que representa o aumento do consumo de drogas (na época,
principalmente maconha e LSD) acompanha quase paralelamente a curva
que representa o aumento de lares possuidores de televisão, com
uma defasagem de quinze anos, conforme ouvimos em uma palestra do Dr.
L.F.C.Mees, em 1970. Ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial a televisão
se tornou cada vez mais popular, invadindo cada vez um número
maior de lares, e aproximadamente quinze anos depois (anos sessenta)
houve uma grande expansão do consumo de maconha e LSD. Principalmente
esta última tem um grande poder de "produzir imagens",
muito ricas e coloridas, mas muitas vezes os usuários também
perdem qualquer noção de realidade quando estão
sob o seu efeito - o que, não raras vezes, tem um desfecho fatal.
5. A educação e as drogas
Estudando o desenvolvimento da criança
e do jovem, e fazendo a comparação entre o que seriam
as condições ideais de educação e o que
realmente ocorre, podemos entender a situação desesperadora
em que o jovem se encontra. Sem saber formar imagens, sem ter tido vivências
de que o mundo é bom, de que o mundo é belo, e percebendo
falsidade, egoísmo, hipocrisia à sua volta, sentindo-se
desrespeitado como ser humano (afinal, os adultos inconscientemente
o consideram uma ameaça, pois ele vai querer tomar o lugar deles),
sua atitude natural será a de rebeldia e/ou fuga. Por que o jovem
deve respeitar quem não o respeita? Por que vai querer preservar
uma sociedade que não lhe oferece um futuro, sendo-lhe até
mesmo hostil? Se ele não conseguir engajar-se por um ideal, no
sentido de lutar por profundas mudanças na sociedade, só
lhe restará destruir o que existe (vandalismo) ou a si mesmo,
seja de forma rápida, com o suicídio, seja de forma lenta,
por meio do álcool, das drogas, etc. Não podemos julgar
os jovens por estarem fazendo uso de drogas. Muito pelo contrário:
quem deve ir a julgamento são os adultos, é a sociedade
que evoluiu num sentido de não permitir um desenvolvimento sadio
da criança e do jovem.
Muito mais do que um problema individual,
com todas as suas conseqüências e desdobramentos, o consumo
de drogas é um problema social. Porém esse social não
tem a ver apenas com a divisão da sociedade em classes sociais
mais ou menos favorecidas; ele envolve toda a humanidade, que deve buscar
compreender o ser humano em toda a sua dignidade – afinal, um animal
racional não merece mesmo mais atenção do que um
bicho qualquer. Os atos deste último são instintivos,
previsíveis segundo a espécie, não tendo conseqüências
tão destruidoras como os dos homens. Justamente pelos atributos
advindos da maior consciência e da autoconsciência, o ser
humano pode tornar-se um ser capaz de desenvolver a liberdade, mas isso
implica também, e principalmente, em desenvolver a responsabilidade.
Por outro lado, a verdadeira liberdade sempre leva em conta o
outro, o que significa adquirir uma profunda observação
de suas necessidades, o que só é possível com o
desenvolvimento de um amor abnegado, altruísta.
Concluímos, portanto, que a prevenção
(e talvez cura) do problema seja possível se o ser humano for
respeitado como tal, especialmente enquanto ainda estiver em fase de
desenvolvimento. A educação deve ter como meta ajudar
a criança a tornar-se um adulto livre, responsável, com
iniciativa, que respeite a si, aos outros e à natureza. Ela também
deve propiciar que o jovem possa desenvolver o verdadeiro amor altruísta,
ser capaz de sacrificar-se por uma causa, uma pessoa, deixando seus
próprios impulsos num segundo plano, mas sem anular-se como pessoa,
como individualidade. Contudo, para educar um outro ser humano nesse
sentido o educador também deverá estar, ele próprio,
empenhado em alcançar essa meta. O verdadeiro educador aprende
muito com as crianças e os jovens, pois sempre tem de estar atento
às necessidades destes, sendo criativo para encontrar soluções
apropriadas. Nisso reside parte de sua auto-educação.
Antes de educar temos de aprender, e o processo educativo faz de cada
parceiro alguém que aprende e que ensina. A vida social é
uma troca constante, um contínuo dar e receber. Como já
vimos, o que não foi aprendido por meio da educação
tem de ser conquistado pela auto-educação. Nunca é
tarde para começar.
Bibliografia
Heydebrand, C. von. A natureza anímica
da criança. São Paulo: Ed.
Antroposófica, 1996.
Lanz, R. A Pedagogia Waldorf. São
Paulo: Ed. Antroposófica, 1998.
Lievegoed, B. C. Desvendando o crescimento.
São Paulo: Ed. Antroposófica, 1996.
Steiner, R. A educação
da criança segundo a Ciência Espiritual. São
Paulo: Ed. Antroposófica, 1998.
Steiner, R. A arte da educação,
3 vols. [vol. 1: O estudo geral do homem, uma base para a pedagogia;
vol. 2: Metodologia e didática no ensino Waldorf;
vol. 3: Discussões pedagógicas]. São
Paulo: Ed. Antroposófica, 1995 (vol. 1, 2. ed.,), 1992 (vol.2)
e 1999 (vol. 3).
Steiner, R. Antropologia meditativa.
São Paulo:. Ed. Antroposófica, 1997.
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