Relato sobre um trabalho de prevenção
Rainer Schnurre
Das Goetheanum, Ano 83, No. 31-32, 1/8/04, pp. 1, 3-6
Trad. H. Wilda, publicado no Boletim da Sociedade Antroposófica no Brasil No. 35, 9/04, pp. 21-31;
revisão desta versão: V.W. Setzer
A consciência social não deve assustar-se apenas com a crescente onda de drogas que atinge alunos cada vez mais jovens e os impele para o vício; já o consumo de bebidas álcoólicas e tabaco, que também está crescendo, coloca questões gravíssimas a respeito de como é possível chegar àquele vício. Os pais mal se dão conta da dependência existente e incofessada de seus filhos, mas muitas vezes receiam-na. Assim, eles procuram aconselhamento, até querem engajar-se no trabalho de prevenção nas escolas. A seguir, o artista social Rainer Schnurre, que às vezes trabalha em escolas Waldorf com pais, professores e alunos sobre a questão das drogas e os possíveis perigos do vício, relata o andamento típico de um seminário de prevenção.
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Pais Waldorf procuram-me e descrevem as suas dúvidas e preocupações. Por exemplo, que a filha ou o filho poderiam tomar drogas, que o consumo de tabaco e bebidas alcoólicas poderia ser iniciado cedo demais ou tornar-se excessivo. Antes de tudo, no entanto, o que os preocupa muito, como frisam sempre de novo, é a prevenção, pois eles mesmos gostariam de fazer um trabalho preventivo na sua escola Waldorf. Enquanto dúvidas, preocupações, esperanças e dificuldades são externados, eu experimento o receio latente, não exposto, dos pais, a carga perceptível de suas preocupações justificadas, a sua perplexidade opressiva, que nem sequer são capazes de admitir perante si mesmos.
A resposta em forma de pergunta - e o embaraço
Em vez de aprofundar-me diretamente em todas as preocupações e perguntas justificadas, eu coloco, como a minha primeira resposta, uma pergunta aos presentes: "Quem dos Senhores toma bebidas alcoólicas?" – A atmosfera muda. Todas as preocupações honestas desaparecem e uma certa hostilidade latente toma conta de toda a cena (1). Geralmente quem começa a responder é alguém que, consistentemente, não ingere bebidas alcoólicas. Muitas vezes segue-se então, como que repentinamente: "O Senhor não pode proibir o meu copo de vinho no jantar!" Eu: "Perguntei apenas quem toma bebidas alcoólicas, mais nada." Silêncio perplexo. Ele me é familiar. Não me inquieto mais com isso. Uma outra pessoa rompe o silêncio ‘insuportável’: "Em verdade nós o convidamos para discutir com o Senhor nossas preocupações e receios, para que os nossos filhos, se possível, não tomem drogas, e não sucumbam ao álcool. Trata-se dos nossos filhos." Eu: "Sim, eu o compreendi. Mas os Senhores não querem nem acolher a minha primeira resposta." Uma outra pessoa: "O Senhor ainda nem sequer abordou as nossas perguntas."
Eu: "Não, é que simplesmente respondi diretamente demais. A minha primeira resposta, agora mais detalhada, é: olhemos primeiro para nós, reunidos aqui na sala." Uma outra: "Não somos um grupo de com experiência própria." Uma outra pessoa: "E por que não? Já que convidamos alguém e o consultamos, não podemos esperar dele que nos dê respostas cômodas." Um pai: "Mas, por favor, não é pelo fato de tomar vinho de vez em quando, que eu logo tenho um problema de alcoolismo!" Aprovação por parte de diversas pessoas. Eu: "O que o senhor diria sobre o seguinte: a partir de quando uma pessoa tem um problema de alcoolismo?"
Uma mãe: "Quando alguém passar a ser dependente do álcool." Uma outra: "Sim, se alguém for viciado, e depois não puder mais viver sem bebidas alcoólicas." Um pai: "Como podemos saber quando alguém é viciado e quando não é? Os limites são fluidos." Os outros: "Exatamente". Eu: "Essa é uma questão essencial. Vamos criar uma base para conversar sobre isso. É claro que mais tarde tudo isso deve ser trabalhado detalhadamente, mas por enquanto vou dar-lhes um curto panorama dos diversos passos de desenvolvimento que podem levar ao vício (ver figura abaixo). Por favor, não se incomodem com o esquema (2), mas sigam o curso vivo dos pensamentos. O esquema surgiu somente após uns 15 anos e não foi criado logo de início."
O caminho para o vício
Sem uma experiência viva dessas sete qualidades, um esquema como esse permanece morto, e não tarda em causar mais mal do que bem. Mas uma vez que essas qualidades dos passos forem elaboradas vivamente, esse esquema ‘caminho para o vício’ pode ser ampliado para um ‘caminho para fora do vício’ e, então, consequentemente, também surge um terceiro caminho: o ‘caminho da prevenção’.
Caminho para o vício 1º passo: a primeira vez. Antigamente, eu defendia neste ponto a opinião, totalmente errada, de que a primeira vez representa o fundamento para o vício. Eu explicava: se não tivesse havido uma primeira vez, não poderia ter surgido um vício. Pela lógica formal, isso não parece estar errado. Em realidade, porém, é um pensamento extremamente hostil à vida. A primeira vez é incomparável. É a vida plena. O que quer que seja: o verdadeiro problema começa com a segunda vez. 2° passo: A(s) repetição(ões) Com a segunda vez, a primeira repetição, começa (despercebidamente) o perigo. Se a primeira vez foi, por exemplo, uma experiência assustadora, eu quero, tal qual os outros, fazer uma vez uma experiência ‘boa’. Se a primeira vez foi uma experiência ‘boa’, quero fazê-la outra vez. A segunda vez, no entanto, jamais será igual à primeira. Portanto, mais uma vez, mais uma vez, mais uma vez... 3º passo: Acostumar-se – o hábito Sem percebê-lo, as muitas repetições tornam-se um hábito. Aquilo ao qual me acostumei, ocorre com uma certa regularidade. Tão logo algo contradiga o hábito, começa a me faltar algo. 4° passo: A dependência Se o hábito ao qual me afeiçoei não puder ser efetivado imediatamente, falta-me algo. Experimento-o como indispensável à vida. 5º passo: O vício Tampouco quanto reconheço a dependência como tal, tampouco reconheço o vício como tal. Só digo "Sou viciado", quando todos, mas realmente todos os pretextos foram usados. Justamente o viciado sempre repete: "Eu posso parar a qualquer momento". Por isso não consigo mais me desenvencilhar sozinho do vício. O problema é, entretanto, que acredito, sem razão, poder fazê-lo sozinho, sem realmente consegui-lo. 6º passo: Vício crônico Viciado de forma crônica é, quem se diz todo dia, que poderia parar a qualquer hora, mas está ocupado unicamente com a satisfação contínua do seu vício. Isso continua até o ponto em que não é mais possível continuar. Seguem-se colapso após colapso, desintoxicação após desintoxicação. É difícil prever um fim. 7º passo: Ânsia de morte O vício crônico leva à ânsia pela última sensação, a ‘dourada’ [goldenen Schuss], que me carrega por sobre do ‘abismo’, ou ao último ‘gole áureo’, que me conduza para fora do ‘vale de lágrimas’, ou para o ‘derradeiro cigarro’ que me conduza ao ‘Nirnava’. |
O meio-termo que decide tudo: onde começa a dependência?
Para poder orientar-me nesse ‘caminho para o vício’, preciso de um critério objetivo. Onde posso encontrá-lo? Resposta: na metade do caminho! Mas o que é uma metade? Além de muitas outras coisas, ela é, como em muitos outros casos, um lugar da impotência como também da liberdade (3). A pergunta decisiva aqui é: o que aparece no centro do ‘caminho para o vício’? É a ‘dependência’. Aqui aparece, inesperadamente, na metade, um critério para mim mesmo.
Com isso fica evidente que o ponto do meio também é o ponto crucial ou centro de rotação e fulcro nos processos vivos. Tudo gira, muda ou se transforma ao redor e através daquele ponto central. No aconselhamento e acompanhamento surge aqui uma primeira pergunta central: até que ponto a dependência progrediu?
"No estágio da dependência, a pessoa ainda pode voltar por si próprio, se bem que, talvez, com acompanhamento. No vício não há mais volta. Ai, só existe ainda um escapar." Silêncio consternado.
Uma mãe: "Mas como posso saber se um jovem talvez já seja dependente, por exemplo, do tabaco ou de bebidas alcoólicas?" Eu: "Bem simples." A mãe: "Ah, agora estou muito curiosa!" Hilaridade geral. Eu: "Agora fica difícil. Chamo-o, em sentido figurado, o ‘teste rápido do tornassol anímico’. Rápido, porque reage em fração de segundos – sem deixar dúvidas –, e logo me fornece informações. Então, vejamos agora o teste do tornassol: Quem quiser saber se é dependente de alguma coisa, no nosso caso de tabaco ou de bebidas alcoólicas, que o deixe por completo, e imediatamente. A resposta, os Senhores darão a si mesmos por meio do ato subsequente. Ou renunciam por livre e expontânea vontade, ou continuam como antes. Neste último caso, os Senhores são dependentes."
Silêncio perplexo. Um pai: "Mas, por favor! Então não posso mais freqüentar reuniões sociais. Hoje consomem-se bebidas alcoólicas em toda a parte – quase em toda a parte..." Eu: "Sim, a situação é como o Senhor diz." Uma mãe: "Mas eu não sou dependente, se uma ou duas vezes ao mês bebo um copo de champanhe ou desfruto de uma bela garrafa de vinho com minhas amigas." Eu: "Se não conseguir viver sem bebidas alcoólicas, a Senhora é dependente delas." Um outro pai: "Agora chega! – Não permito que o Senhor determine, se sou dependente! Eu não bebo, mas saboreio. Talvez o Senhor não entenda, mas gosto de desfrutar um vinho de boa qualidade. Hoje em dia ele até existe em qualidade Demeter, sem as muitas substâncias nocivas. E para mim, uma boa refeição requer um bom vinho! E, às vezes, um bom trago faz parte de uma noite social." Uma mãe: "Justamente!" Uma outra mãe: "Mesmo assim – a questão era: sou dependente? E se não posso renunciar deliberadamente ao álcool, foi dito que sou dependente. Infelizmente, ele tem razão. É verdade..." Uma outra mãe (interrompendo-a): "Você pode falar sem problemas, você não tolera bebidas alcoólicas, e tampouco já chegou a fumar!" A primeira: "Está certo, mas esse não é o tema. Ele tem razão, não importa se eu tomo bebidas alcoólicas ou não. Se não consigo renunciar deliberadamente, sou dependente." Um pai (interrompendo-a): "Não permito que alguém me proíba o meu vinho, nem o Senhor, nem você!" Outros (rindo): "Pois sim, apenas por vinho!" O primeiro: "Agora bastaq para mim!" Eu: "A questão aqui é, portanto: posso imaginar uma vida sem bebidas alcoólicas ou sem tabaco?" Uma pessoa (rindo): "Imaginar, sem dúvida!" Outra: "É claro que posso imaginá-lo; mas não quero que alguém me diga, se posso ou não posso tomar o meu vinho." Eu: "Em verdade não se trata de impor ou ditar normas, mas a questão é: a partir de quando eu sou dependente? Resposta: quando não consigo renunciar deliberadamente, eu sou dependente."
Uma mãe: "Para dizer a verdade, nós o convidamos para falar com o Senhor sobre os perigos do consumo de bebidas alcoólicas e drogas e uma possível prevenção para as nossas crianças e adolescentes em crescimento. E, agora, ele só fala conosco sobre nós mesmos." Eu: "Essa é a precondição para que seja possível exercer uma prevenção eficaz." Uma mãe (quase indignada): "Mesmo o professor responsável pela questão das drogas em nossa escola de vez e quando toma bebidas alcoólicas. Isso é seu assunto particular . Contra isso não há nada a objetar."
Eu: "Há sim! Isso não é somente o seu assunto particular, se na escola ele é responsável pelas questões relativas às drogas e até pela prevenção." Uma outra pessoa: "Ah, agora acaba vindo a proibição, de sua parte." Eu: "Não, não é proibição, somente coerência e clareza. Trabalho preventivo é um dos mais difíceis. Não posso assumir esse trabalho indiscriminadamente e pretender que poderia vesti-lo como se veste uma roupa bonita. A prevenção já não é mais um trabalho comum de esclarecimento. Para isso preciso de habilidades bem especiais, e inicialmente não as tenho. Esse reconhecimento doloroso é um primeiro pressuposto, pois um verdadeiro trabalho de prevenção não vai apenas até a razão; nesse caso, tudo fica preso na cabeça, e permanece sem efeito mais profundo. Na cabeça, também os adolescentes são compreensíveis, até mesmo razoáveis, mas não na capacidade e no atuar, nem os adolescentes nem nós adultos – sempre excluindo os presentes." (Hilaridade forçada.)
Eu: "Quem quiser exercer um trabalho de prevenção sem uma auto-educação intensa, é parecido com aquele que tem pressa para chegar a algum lugar, partindo com o pé na tábua sem soltar o freio de mão, sem o perceber. Porém, um genuíno trabalho de prevenção pressupõe um auto-conhecimento e uma auto-superação conscientes e exercitados energicamente.
O exemplo de Gandhi Uma mãe chegou a Ghandi com seu filho e disse: "Por favor, diga ao meu filho que ele não deve mais comer doces. Não faz bem a ele, e a você ele obedece." Ghandi respondeu: "Volte em uma semana." Após sete dias ela volta com seu filho, e Ghandi diz à criança: "Renuncie aos doces, fará bem a você". A mãe exclama espantada: "Mas Gandhi, por que você não lhe disse isso logo?" Ghandi respondeu: "É que primeiro eu mesmo tive que conseguir renunciar aos doces." |
Todo o resto é falso e não é prevenção; na melhor das hipóteses, é má propaganda, disfarçada de esclarecimento. Quem quiser atuar no trabalho de prevenção, deve – por favor, prestem atenção na vívida contradição – poder e querer desistir deliberadamente . Desistência não é sofrimento como muitos acham, mas o estreito portão para a liberdade sem imposição. Desistência silenciosa exercida deliberadamente liberta nos Senhores forças inesperadas. Por isso, ela é também a única chave para sair da dependência e é uma grande ajuda na terapia de vícios. Abstinência deliberada também é o conceito central no trabalho de prevenção, pois somente pelos próprios exercícios espontâneos de abstinência resultam-lhes as forças que sem isso faltam, se os Senhores ficarem presos ao consumo, justamente do que querem poupar a juventude."
"Eu quero renunciar"
Eu concluo: "A frase central é: ‘Eu quero renunciar!’ (4) Experimentem meditar essa frase. Ela produz milagres, mas somente para os que a levam a sério. Mas então não é um milagre, porém é mais do que isso. No esclarecimento geral posso ficar discutindo. Isso é só para a cabeça. Na prevenção não devo mais querer discutir mas, em vez disso, trabalho rigorosamente em mim próprio, por causa do aumento de energia que necessito sem falta. Os que querem atuar nesse âmbito devem chegar à altura de todas, no caso, da únicapergunta das crianças e dos adolescentes. Pois tão logo os Senhores forem ao encontro deles exigirem ‘esclarecimento’ ou até mesmo ‘prevenção’ em questões relativas a drogas, consumo de bebidas alcoólicas ou tabaco, serão confrontados, de forma implacável, com uma questão não pronunciada que terão de responder. Se não for respondida pelos Senhores de forma honesta, as crianças e adolescentes permanecerão hermeticamente fechados frente aos Senhores. A pergunta é mais ou menos a seguinte: ‘Cite uma única razão verdadeiramente convincente, porque eu não deveria consumir drogas ou tomar bebidas alcoólicas? Somente uma!’ Procurem solucionar essa pergunta enigmática. Qualquer razão que possam apresentar, não será nem verídica nem convincente, enquanto os Senhores continuarem tomando bebidas alcoólicas, ingerindo drogas ou fumando. Se eu mesmo não desistir espontaneamente desse consumo, não poderei responder nem de forma verídica, nem de modo convincente, porque através do meu próprio consumo eu sou o freio de mão puxado, do qual falei mais acima. Justamente essa pergunta dos jovens possibilitaria uma largada perfeita. Por meio do seu consumo de bebidas alcoólicas, de tabaco, os Senhores mesmos são uma resposta viva, já que os Senhores mesmos não sabem dar uma razão. É por isso que tomam bebidas alcoólicas e fumam. É essa a modesta verdade, nada mais. Mas quem ousa tornar-se coerente ? Os Senhores já não querem assumir essa primeira coerência, mas apesar disso querem dedicar-se à prevenção. Disso não resultará coisa alguma. Esclarecimento para a cabeça sempre está disponível. Há livros e revistas sem fim. Esclarecimento que chega até os sentimentos só pode ser feito por quem desiste espontaneamente do que ele quer esclarecer aqui.
O trabalho de prevenção tem a liberdade como seu verdadeiro fundamento. Quem não consegue renunciar em liberdade ao álcool e ao tabaco é dependente, isto é, não é livre.
"As pessoas vêm e perguntam: é melhor não beber álcool ou é melhor beber álcool? [...] Jamais digo a uma pessoa que ela deve deixar o álcool [...], porém digo a ela: o álcool tem tais e tais efeitos. Simplesmente descrevo como é o seu efeito, de modo que a pessoa possa resolver por si própria beber ou não." "É isso que, antes de mais nada, devemos ter na ciência: respeito pela liberdade humana. De modo que não se tenha a sensação de querer mandar uma pessoa fazer algo proibi-la de fazer isso, mas relatamos-lhe os fatos. Se ela sabe como atua o álcool, alcançaremos o máximo com isso. Chegaremos então a conseguir que pessoas livres possam dar-se, a elas mesmas, a sua direção. E é isso que devemos almejar." Rudolf Steiner, "Die Wirkung de Alkohols auf den Menschen" [O efeito do álcool sobre o ser humano], conferência de 8/01/1923, inÜber Gesundheit und Krankheit [A respeito de saúde e doença], GA (Gesammtausgabe, edição geral) 348. |
O trabalho de prevenção tem a liberdade como sua verdadeira razão. E quem não conseguir desistir deliberadamente das bebidas alcoólicas e do tabaco é dependente, quer dizer, não tem liberdade.
O trabalho de prevenção é educação prática para a liberdade. É a capacidade de poder descrever passo a passo um caminho à frente para a liberdade, que nós mesmos já vivenciamos parcialmente. O meu caminho é diferente do seu. Nesse caso, comparações não ajudam . Convincentes são apenas as poucas vitórias alcançadas pelos Senhores no longo caminho de suas inúmeras derrotas. Se isso puder ser apresentado claramente, com conhecimento, humor e isenção, será uma medida para os jovens.
Não uma medida no sentido de: ‘Eu quero ser como ele’. Não, isso seria pura ilusão. Senão: Aqui está diante de você alguém com muitas deficiências, com um n’[umero incrível de malogros. Mas de todas as derrotas ele sempre levantou-se de novo. Agora ele está ereto diante de você. Se você pede-lhe: ‘Cite uma razão convincente porque eu não devo usar drogas e devo desistir das bebidas alcoólicas e do tabaco!’, ele começa a rir. Então aquele que trabalha com prevenção vai rir e talvez responda: ‘Não caio na sua armadilha! Você mesmo deve encontrar a sua razão. Mas eu lhe digo a minha razão, se você quiser ouvi-la.’ Talvez ele responda: ‘Sim, a sua razão me interessa.’ (5) ‘A minha razão é o amor pela liberdade. E faço o trabalho de prevenção, porque a sua liberdade me é tão importante quanto a minha.’"
Após uma prolongada pausa de contemplação, o único professor presente diz: "Sim, ficou tarde. Nós, os pais e eu lhe agradecemos de o Senhor ter vindo até aqui. Agora com certeza temos muitos estímulos para pensar. Vamos primeiro elaborá-los com calma e, se necessário, entraremos em contato novamente com o Senhor." Eu: "Muito obrigado pela sua paciência e por terem agüentado esses desafios." Alívio na despedida. – Finalmente ele está lá fora.
"No álcool, no entanto, a coisa é muito grave, porque neste caso o esclarecimento não adianta muito, se ele não levar ao fato de a pessoa parar de consumir mesmo um pouco de álcool. Pois se ela começar a tomar um, dois copos, ela chega à situação em que o esclarecimento começa a perder o efeito, e então ela continua bebendo. Por isso, justamente com o álcool, é tão extraordinariamente difícil conseguir fazer muita coisa com esclarecimentos." Rudolf Steiner, conferência de 16/2/1924, in Natur und Mensch in geisteswissenschaftlicher Betrachtung [Natureza e ser humano na observação científico-espiritual], GA 352. |
Educação para a liberdade – educação para a espiritualidade
A questão básica à qual todo trabalho de prevenção quer chegar ainda nem foi tocada aqui: por que as pessoas tomam drogas e bebidas alcoólicas ou fumam? Alguma coisa falta na sociedade. Qual é a questão que não está sendo tratada na sociedade? É a questão social: como nos relacionamos mutuamente. Essa questão social está sendo totalmente relegada. É uma questão espiritual e vive entre nós. Como sua conseqüência logo aparece a questão social ampliada. É a questão do carma. Esta também está sendo deixada de lado dentre nós, pois também é uma questão espiritual. (6) Mas é justamente o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco que produz a exclusão da questão espiritual: como se adquire conhecimentos dos mundos superiores?
A juventude procura o acesso ao mundo espiritual. Nós obstruímos-lhe esse acesso, na medida em que nós mesmos não o encontrarmos. Nosso consumo de bebidas alcoólicas é a prova vívida disso. Também obstruo o acesso da juventude ao mundo espiritual, enquanto ainda organizo conferências, seminários e encontros ‘sobre’ os mundos espirituais. Levo-os então ao êxtase esotérico. O ‘sobre’ não serve mais para a juventude. Ela quer receber descrições de vivências, também experiências da aplicação de Antroposofia. quer também descrições exatas dos meus malogros e deficiências, porque se reconhece neles. A juventude de hoje não procura mais heróis, mas seres humanos. Isso, entretanto, quer dizer: ‘Mostre a sua ferida.’ (7) Somente uma ‘prevenção espiritualizada’, vivenciada, sofrida, até mesmo suportada por nós mesmos será capaz de novamente alcançar a geração jovem. Quem agora ainda fala ‘sobre ela’ ou ‘sobre’ o mundo espiritual e não por meio dela, sem aquele pano de fundo existencial sofrido, obstrui para a juventude os caminhos para ela, ‘semeia ventos e colherás tempestades...’.
"Também a relação do ser humano com o álcool está sujeita a uma transformação, se ele interpenetrar-se-se interiormente, de maneira viva e séria, com a Antroposofia. O álcool [...] menifesta-se não apenas como uma produção de carga no organismo humano, mas chega a mostrar-se diretamente como algo que produz um poder de oposição nesse organismo. [...] Isso quer dizer que no álcool acolhemos em nós um anti-Eu, um Eu que é combatente direto contra os atos do nosso Eu espiritual. [...] De modo que desencadeamos uma guerra interior e no fundo condenamos à impotência tudo o que parte do Eu, se colocarmos um oponente diante dele no álcool. Esse é o fato oculto". Rudolf Steiner, conferência de 20/03/1913 em Welche Bedeutung hat die okkulte Entwicklung des Menschen für seine Hüllen und sein Selbst? [Qual o significado do desenvolvimento oculto do ser humano para os seus invólucros e para sua personalidade (self)?], GA 145. |
Não é a tendência cômoda a contemporizar, mas o amor pela liberdade é que nos ajuda a continuar. Precisamente tentar-se fazer média, a moderação de ‘um, dois copos’ é que causa guerra neste caso. O trabalho de prevenção espiritualizado, no entanto, é trabalho pela paz, é a prática da educação para a liberdade. Mas primeiro para a nossa própria...
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(1) Sempre há alguns pais que, consistentemente, não consomem bebidas alcoólicas. Mas estes são sempre, repito, sempre uma nítida minoria.
(2) Vide também Rainer Schnurre, Karma Gemeinschaft [Comunidade de Carma], Berlin 1999, cap. "Os sete passos da iniciativa".
(3) Aqui isso só pode ser mencionado; no meu livro Karma Gemeinschaft isso é devidamente fundamentado.
(4) Todas as iniciativas nas terapias do vício que, de alguma forma, queriam combater algo, tiveram que fracassar ao longo do tempo, porque através de um 'contra' o problema sempre é piorado e torna-se mais profundo.
(5) Aqui encurto o processo, pois na dura discussão concreta eu não ofereço a resposta na baixela de prata do intelectualismo; ao contrário, tudo será trabalhado laboriosamente, passo a passo.
(6) Não cito aqui títulos de livros, mas coloco a questão espiritual central.
(7) Nome de uma montagem do artista Joseph Beuys e um tema de vida do seu trabalho pela 'escultura social'.
A entrada e a saída pessoais Eu quis ultrapassar ‘todos’ os limites existentes, para chegar ao espiritual. Assim, experimentei também as plantas venenosas nativas, e cheguei a conhecer os seus efeitos. Mas maconha e haxixe não me soltaram mais. Justamente hoje, ambos são muito subestimados, muitas vezes até declarados inofensivos e denominados ‘drogas suaves’. Não são inofensivos nem suaves. São insidiosos, parecem inofensivos por causa de sua lentidão, mas em realidade destroem a autoconsciência até a estupefação. De fato eu procurava um caminho para os mundos espirituais; por muito tempo não notei que me havia tornado dependente. Dito de forma mais exata, somente muito mais tarde consegui admiti-lo para mim. Em maio de 1980 encontrei um mestre cristão de meditação, um rosacruz (*), que me deu três livros, dois de um tal de Rudolf Steiner, O Conhecimentos dos Mundos Superiores e O Cristianismo como Fato Místico e os Mistérios da Antigüidade [São Paulo: Ed. Antroposófica], e um de Thomas von Kempen Die Nachfolge Christi [A sucessão de Cristo]. Já durante a volta, no ônibus, depois de ter lido as primeiras páginas de Rudolf Steiner, eu sabia: este é o caminho, era isso que você procurava. Até ali eu procurava algo e, em realidade, não sabia o quê. Com esses três livros e o acompanhamento espiritual pelo mestre de meditação, minha lenta virada de vida começou aos trinta e quatro anos e meio. Após um dos primeiros encontros com o mestre, deixei o álcool e as drogas. Em nenhum momento falamos a respeito. Ele via tudo claramente diante de si. O fumo deixei um pouco mais tarde. Agora tudo isso caiu de mim como uma armadura que ficou apertada demais. No primeiro encontro, o mestre pediu-me para passar o ancinho na grama alta no jardim, porque nesse dia eu não servia para fazer nada de sensato. Entrementes eu vivia e trabalhava com ele, e estava satisfeito de, nesse dia, poder estar no jardim. Após poucos minutos, porém, perdi a força. Perdi-a tão totalmente, que não mais podia puxar o ancinho pela grama. Nem consegui mais segurá-lo. Ele só me serviu de suporte, para deitar. Era esse o meu fim? O tempo permaneceu parado. Eu não sabia se chegaria a poder levantar-me novamente. Uma brisa suave. O sol brilhava através dos majestosos pinheiros que, ao mesmo tempo, ofereciam sombra. Mais de uma vez pensei na morte. Será que ela chega de maneira tão cômoda? Provavelmente não. Isso não era o fim, mas eu estava no fim. Isso, porém, significa ao mesmo tempo encontrar-se num começo. Assim, eu tornei-me o último discípulo do mestre. Freqüentemente, ele era procurado por pessoas que buscavam conselho e ajuda. Cheguei a conhecer silenciosamente muitos destinos de pessoas que estavam à procura do espiritual. A maioria delas haviam errado o caminho, tal como eu. Três anos após a morte do mestre, eu fundei, junto com um antigo discípulo dele, também um ‘ex-usuário’ tal como eu, uma comunidade domiciliar para viciados crônicos, com os primeiros sete anos de Antroposofia como apoio e, em 1990, junto com nove pessoas em Berlim, o projeto cultural ‘Arche Nova – Sozialkunst-Gestaltung’. ‘Sozialkunst-Gestaltung’ [configuração da arte social] descreve de forma fenomenológica a questão social do ‘o que acontece entre nós?’. Ela ensina como são desenvolvidas capacidades de percepção, descrição e formação no social. Isso ocorre por meio do meu saber vivido e sofrido, que eu percebo direta e conscientemente, até dentro do sentimento. E na transmissão para outros, eu falo e trabalho de tal forma, que tudo isso possa chegar até o sentimento. Rainer Schnurre (*) Wolfgang Wegener (1918-1984). Descrevi isso com mais detalhes em meu livro Karma Gemeinschaft [Comunidade de carma], Berlim: ed. própria, 1999. Sobre a atuação desse ocultista e antropósofo, vide Das Goetheanum Ano 77, Nº 22/23 e 24, 1998.
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