Ora (direis), Ouvir Histórias!
Rosane Pamplona
21/11/10
Afortunadas as crianças que ouvem histórias! Acalentadas pela voz do narrador, rejubiladas pela maravilha das imagens, deixam-se guiar pela luz das verdades essenciais que ali se escondem. A satisfação estampada no rosto das crianças quando ouvem os antigos contos de fadas é assim explicada pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva: "é que sua consciência está sendo povoada pelos deuses."
Entretanto, não é difícil perceber que, a partir de uma certa idade, muitos não querem mais os contos de fadas. Varinhas-de-condão, bichos que falam, isso começa a parecer-lhes demais infantil. A criança quer pensar, quer agir por si mesma; desconfia dos objetos mágicos que tudo resolvem. Esse comportamento crítico prenuncia-se por volta dos 10 anos – mais cedo para uns, mais tarde para outros –, tornando-se evidente aos 12. São as forças do intelecto, que vêm conquistar seu espaço: há pouco lugar para o mundo que a criança não pode explicar. Louvável será, nesse momento, respeitar-lhe os interesses, fortalecer sua confiança nas suas capacidades de pensar. Nada louvável, porém, será simplesmente privá-la do mundo benfazejo das imagens simbólicas. Se assim o fizermos, o jovem, em seu íntimo, sentirá uma espécie de angústia. Até então guiado pela mão segura e reconfortante das imagens dos contos de fadas, seu espírito, desorientado, muitas vezes busca compensação no fantástico – porque tem sede de fantasia; no rebuscado – porque não quer o vazio; no apavorante – porque sente falta das provas de coragem, dos dilemas e perigos enfrentados pelos seus antigos heróis. É esse caminho ilusório que o faz fascinar-se pelos filmes de terror, pelas aventuras mirabolantes de personagens que mais mereciam o nome de aberrações; substituir a figura do herói pelo bonequinho do videogame, com suas tarefas controladas pelos botões; ou ainda adquirir, em qualquer esquina, seus mitos embalados em saquinhos plásticos. O que a criança está dizendo com essa busca é que, embora seu intelecto queira pensar, sua alma está infeliz e anseia pelas imagens essenciais trazidas do passado. Assim, é importante que o alimento das histórias não lhe seja negado; que ele venha sob outra forma, através de narrativas que privilegiem as capacidades inerentes ao pensar – a inteligência, a sagacidade, o humor, a perspicácia – e mantenham a linguagem simbólica para, através dela, despertar as forças morais: a responsabilidade, a coragem, a solidariedade, a honestidade, o senso de justiça.
Com aqueles que acreditam que adolescentes não se interessam por histórias, gostaria de partilhar uma experiência que marcou minha entrada na Escola Rudolf Steiner de São Paulo. Professora de português, era meu primeiro dia de aula. A classe, 9º ano (1º do ensino médio). Quarenta alunos me esperavam ansiosos e curiosos com aquela nova professora que entrava no meio do ano letivo. Mas eu olhei bem aqueles rostinhos desafiadores, me apresentei e disse:
– Vou começar contando uma história.
A reação foi imediata:
– História, professora?! De onde a senhora veio?
– A senhora acha que estamos na 1ª série? Aqui é o colegial!
– Uma historinha? Há, há! Qual vai ser? Chapeuzinho vermelho?
A essa última provocação, respondi, firme, confiando na minha experiência com jovens:
– Não, não é a do Chapeuzinho. É uma que vocês não conhecem ainda, tenho certeza.
As vaias continuaram, até que os mais pacatos apelaram aos colegas que me dessem uma chance:
– Vá lá, pessoal, primeiro dia dela, vamos colaborar...
Então contei a história. Um antiqüíssimo conto da tradição oral, numa versão da Idade Média. O conto falava de bruxos e passes de mágica, mas trazia em seu simbolismo uma mensagem de responsabilidade, hombridade e justiça. Quando terminei, saboreei ainda por alguns minutos o silêncio reflexivo que se fez na classe. Depois, continuei a aula, sem comentar mais nada sobre a história.
Na aula seguinte, entrei e contei outra história sem precisar vencer resistências. Era um conto da tradição africana, com uma pitada de humor irônico, bem próprio para adolescentes. Novamente os alunos ouviram com atenção. O silêncio que sucedia a narração me dizia que algo dentro deles estava fermentando. No terceiro dia, mudei a estratégia. Antes de entrar, pude ouvir que eles comentavam sobre as histórias. Não disse nada e comecei a pôr um exercício na lousa. A reação foi imediata:
– Professora!! E a história de hoje?
– História? – respondi. Mas vocês não estão grandinhos para ouvir historinhas? – ironizei.
– Ah, professora... – lamentaram eles. A gente estava aqui tentando lembrar as histórias de nossa infância. A senhora conhece a da Rapunzel?
– A Rapunzel? Quem diria! Quer dizer que agora posso contar até a do Chapeuzinho vermelho, é?
Eles riram e, a partir daí, soube que a porta estava novamente aberta. Nunca deixei de contar histórias a eles e aquela classe se tornou particularmente querida por mim. A eles dediquei meu primeiro livro.
Tenho certeza de que, contando histórias tradicionais (lendas, fábulas, mitos, contos folclóricos) aos nossos jovens, estaremos ajudando-os a na sua busca pela felicidade, pois por meio delas eles podem manter o fio que os liga ao universo das verdades imperecíveis. A experiência nos diz que, quando não têm cortados esses laços, mais tarde, com facilidade e redobrado interesse, podem retomar e reviver as mais antigas imagens de sua infância, cuja doce sabedoria os guiará para sempre.
E – acreditem – eles nos serão gratos por nunca terem sido privados da companhia dos deuses.